Prefácio do livro "Dois passos antes da esquina", de Marcos Fernando Kirst (2009) - p.4/6.
"A passos lentos, a vida vai se refazendo, sustentada pela memória. É quase sempre no passado que conseguimos respostas para as coisas que a razão não dá conta, por ignorar o momento em que tudo nasce. Atravessamos os dias cheios de certezas que nos afastam de um gesto mais espontâneo, desse dizer necessário que torna tudo real, carregado de significados.
Seguimos, quando seria necessário parar. Permanecemos imobilizados, quando uma palavra ou mesmo um rápido olhar serviriam para impedir esses interditos afetivos que rondam os nossos dias. Dois passos antes da esquina. Talvez seja neste lugar equivocado que acontecem as revelações mais contundentes, a descoberta de uma claridade que parece nunca antes ter nos habitado. E assim que o escritor Marcos Fernando Kirst nos apresenta seu romance: como uma discreta sinfonia de movimentos interiores, de ritmos que nascem dentro de um tempo preciso, de cores inusitadas.
Um velho conversa, no pequeno cemitério de uma vila, com a esposa morta há poucos dias. A partir desse fato insuportavelmente real toda a busca, todo o registro sentimental se faz através de reminiscências, mesmo quando a realidade tenta se impor. Como se uma crosta de dor impedisse a presença do novo, do que está por vir. Pouco importa o encontro com alguns passantes ou seres com os quais compôs meticulosamente a sua existência. Tudo serve de apoio para desenterrar um tempo que já não sustenta o humano e suas significações.
A páginas tantas, o encontro com um livro manuseado pela criatura amada torna-se o elo para reconstruir o que a presença não foi capaz de cristalizar. E aqui se pode evocar esse longo percurso que precisamos fazer para recuperar um detalhe, uma palavra ou mesmo uma ausência. Somos criaturas que desejam, mas que nem sempre suportam esse desejar. Reconstruir a vida através do pensamento ou da posse de objetos que pertenceram a alguém que já morreu passa a ser um recurso dolorido, mas necessário para manter a caminhada, mesmo que seja preciso parar, sempre, dois passos antes da esquina. Um lugar simbólico, uma espécie de Pasárgada, onde é possível resgatar a presença de tudo que se amou. Principalmente daquilo que foi amor sem ter recebido esse nome.
Otto, o velho militar aposentado que procura no túmulo da esposa o que não soube ver quando a tinha sob o olhar preguiçoso de quase sessenta anos de casamento, já não é mais um ser entregue à banalidade dos dias. Pois, de um modo particular, cada um de nós se espalha pela existência deixando essas frestas não preenchidas de afeto, esse postergar que desconsidera as oferendas modestas que compõem o amor e seus derivativos. Inventamos uma espécie de eternidade que nos desobriga de sermos felizes agora.
Este denso e instigante romance se apresenta como um adágio, a cena roubada de uma obra que não cabe em si. E assim o é porque nele está concentrado não só o inventário que um homem, já próximo do fim, faz de tudo o que passou ao lado da criatura amada. Em cada cena há a surpresa de uma descoberta que se mistura com o remorso, mas que também alivia, porque não pertence mais aos porões, a essas áreas de pouca luz, de pouco sentimento, de pouca verdade. Repisar o que já aconteceu, quando a morte mostra a cara, é um duelo quase físico, um confronto que aniquila organicamente, pela fragilidade desse nosso corpo que é também alma.
Marcos Fernando Kirst não permanece nas margens, não insinua o sofrimento do outro, não é uma testemunha ausente do que se passa com as personagens que cria. Com sua voz vigorosa vai desdobrando um amor que poderia ter sido e não foi. Mas que, por força de um amadurecimento póstumo, ganha lugar na passagem da existência, como se lhe brotasse um coração onde os batimentos cardíacos já não existem. Não se encontra aqui, no entanto, um exercício condenatório, o dedo em riste que aponta o que se deveria fazer, o que não se fez. As coisas são o que são, destituídas de um significado transcendente. A responsabilidade é nossa e carregaremos essa dor sempre na algibeira. Porque a lucidez é companheira infiel e acaso e destino se misturam na composição final de cada pequeno mundo.
Quase uma vertigem, uma busca pelas sombras, a presença do sangue no meio do caminho. Mas, afinal, o estranhamento se converte em paisagem familiar. Talvez, sem saber, ou mesmo sem querer, Otto tenha dado dois passos além da esquina. E encontrado, ao fim de poucos dias, o que chamamos de sentido, essa estranha palavra que parece justificar o peso que pagamos pela nossa humanidade.
Gilmar Marcílio (Filósofo, cronista e escritor, autor dos livros “Frutos Ardentes” e “O mundo é o que é”)"
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