Nelson de Oliveira
Convidado pela Universidad de Lima para expôr, durante o encontro La literatura en el siglo XXI: hablan los jóvenes, as características do novo conto brasileiro, logo percebo o perigo da empreitada. Como definir, de forma clara, algo multifacetado e fora de foco? O texto que se segue lido para um auditório composto de estudantes peruanos e jovens escritores de todos os países de língua hispânica e portuguesa, tenta se esquivar das armadilhas do tema proposto. Ou seja, tenta escapar à dogmatização. E, de quebra, procura esboçar os contornos de uma possível Geração 90 no conto brasileiro, razão pela qual só foram levadas em conta as coletâneas publicadas entre 1990 e 2000. A recém-lançada antologia Geração 90: manuscritos de computador, que traz ao grande público os melhores contistas brasileiros que estrearam no final do século XX, deve muito à tentativa de esboço que se segue.
O NOVO CONTO BRASILEIRO: APOCALIPSES
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O título deste comunicado, propositadamente bombástico, é uma falácia. Ele grita aos quatro ventos que o que será dito aqui é algo muito mais ambicioso do que de fato é. Afinal, o que se espera de alguém que se proponha a apresentar o novo conto brasileiro é que tal pessoa exponha um painel hegemônico e minucioso da narrativa curta que está sendo praticada hoje no Brasil. E isso é impossível. Primeiro porque há já algum tempo, desde que as escolas literárias se fragmentaram, está havendo uma diáspora estética e cada novo autor, longe de querer se associar a grupos mais ou menos coesos, está preferindo formar seu próprio clube de um só associado. Segundo porque, devido à vasta extensão do território nacional e ao precário sistema de distribuição de livros, o que se vê atualmente são ilhas literárias separadas por largas faixas de vácuo. Dessa maneira, já nos acostumamos a falar, mais do que em literatura brasileira, em literatura do sul, do sudeste, do centro-oeste, do norte e do nordeste. Todas muito diferentes, cada qual com suas próprias características e seus autores canonizados. Isso do ponto de vista da divisão política do país. Há outras divisões que merecem ser levadas em conta: a étnica e a sexual, principalmente. Já começa a engatinhar, aqui e ali, a literatura produzida pelas minorias: a dos negros, a dos índios, a dos homossexuais etc.
Por tudo isso, sou o primeiro a reconhecer que minha apresentação será apenas parcial, não passando, na melhor das hipóteses, de mero depoimento pessoal sobre os autores que conheço e admiro. Tentar transformar este depoimento num estudo mais sério, que ambicionasse cartografar o novo conto brasileiro, seria temerário. Também não creio que tal empreendimento seja passível de ser levado a cabo, neste momento, por quem quer que seja. Ele demandaria esforço e sensibilidade sobre-humanos, e, é claro, ferramentas teóricas que não excluíssem a produção das minorias citadas — em resumo, exigiria uma nova crítica.
Por razões que conhecemos bem, a literatura brasileira ainda é a literatura do homem branco, de classe média-alta, europeizado e heterossexual. Não é à toa que não há nenhuma jovem escritora no pequeno grupo sobre o qual comentarei a seguir. Também não há, nesse grupo, nenhum contista negro ou índio, nenhum contista homossexual (ao menos nenhum disposto a abrir mão do jargão francamente hetero). Como já disse, a produção literária brasileira segue o modelo europeu e norte-americano, que só recentemente começa a perceber a importância cultural de deixar falar outras vozes — a dos excluídos — se não quiser sofrer uma grande estagnação.
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Sou, talvez, o último dos otimistas. E sofro todas as conseqüências que essa postura costuma trazer aos que, otimistas como eu, vivem num meio social quase que exclusivamente de apocalípticos. Apesar dos pesares, acredito piamente que nos últimos dez anos a literatura brasileira só fez crescer. Tanto na prosa quanto na poesia. Não estou dizendo que o número de leitores aumentou, nem que nossos livros passaram a ser mais traduzidos e respeitados no exterior. Isso de fato não aconteceu: a maior parte da população do país continua subnutrida e analfabeta, e nossos grandes autores continuam, na melhor das hipóteses, circunscritos aos limites do idioma português. Se há algum intercâmbio perceptível, ele se dá entre os países lusófonos, e só. Nem a Europa nem a América do Norte parecem interessadas no que está sendo feito aqui. Curiosamente, amigos meus residentes fora do país têm mais interesse pela produção local, seja ela francesa, alemã, americana ou canadense, do que pela vernácula — mas sempre é bom frisar que isso não é crime, é apenas uma constatação minha. Trocando em miúdos, quando o assunto é literatura o Brasil continua ocupando posição periférica, de mero consumidor.
Esse estado de coisas induz alguns a crer que a literatura brasileira não tem qualidades suficientes que a tornem produto de exportação. Os apocalípticos mais ortodoxos costumam dizer que não existe o que se convencionou chamar, da parte de otimistas como eu, de literatura brasileira. Tanto a prosa quanto a poesia que se produz hoje, no país, não passaria de arremedo raquítico do que de melhor se tem feito no resto do mundo economicamente desenvolvido. De qualquer maneira, tal posicionamento não condiz com os fatos. Ou porque o que se está produzindo hoje, no mundo economicamente desenvolvido, deixa muito a desejar, ou porque certa miopia tem impedido o leitor mais incrédulo de enxergar o apocalipse estético (o melhor que poderia haver) onde ele realmente está ocorrendo: a um palmo do nariz. É o que pretendo demonstrar a seguir, ao comentar a obra de cinco novos contistas brasileiros.
Para efeito de análise, optei por focalizar apenas os autores que, nascidos em torno de 1960, apesar de relativamente jovens já superaram o trauma do primeiro livro, e, no caso de Marçal Aquino, até mesmo do segundo. Sei muito bem que, procedendo dessa maneira, corro o risco de não fazer justiça a grandes promessas do conto brasileiro surgidas recentemente, como é o caso do gaúcho Altair Martins, do pernambucano Marcelino Freire, do mineiro Sérgio Rodrigues e do paulista Ronaldo Bressane, que estrearam este ano com primorosos livros de contos, e de Michel Laub, também gaúcho, Aleilton Fonseca, baiano, e Ademir Assunção, outro paulista, que, conhecido por sua poesia de excelente qualidade, publicou um livro de contos que não fica nada a dever ao restante de sua obra. O que não posso deixar de dizer é que cada um destes sete determinou e passou a seguir seu próprio caminho, distinto dos demais e de seus antecessores, fato muito raro em autores estreantes.
Os contos de Altair Martins, presentes em Como se moesse ferro, são longos e sinuosos, com vigorosas pinceladas do melhor surrealismo, como certas composições de teor místico e maravilhoso que hipnotizam e devoram a assembléia. Já os de Marcelino Freire, enfeixados em Angu de Sangue, são, ao contrário, enxutos e ríspidos, e por isso mesmo extremamente ácidos, quando não prenhes do lirismo azedo típico desta virada de século. Os de Sérgio Rodrigues, d’O homem que matou o escritor, e os de Ronaldo Bressane, d’Os infernos possíveis, fazem uso da metalinguagem, do pasticho, do reaproveitamento de histórias escritas por outros autores, tudo isso mesclado com o impacto do fantástico, no caso de Bressane, e do sexo e da violência, no caso de Rodrigues. Por sua vez A máquina peluda, de Ademir Assunção, lançada em 1998, também finca raízes no terreno da paródia e da metalinguagem, do texto que se volta sobre si mesmo para nos mostrar os absurdos que o discurso verbal, dogmático, costuma impingir aos que o utilizam. Não depois do que aconteceu, de Michel Laub, também publicado em 1998, quando o autor contava vinte e cinco anos, traz um conjunto de narrativas cuja epiderme ainda guarda o viço da juventude, fase da vida em que a gíria e a linguagem corrompida por estilhaços do inglês, típicas dos adolescentes, dão o tom aos vários mergulhos de natureza psicológica que compõem a obra. No pólo oposto temos os contos de Aleilton Fonseca, reunidos em Jaú dos bois, de 1997, cuja valorização do corriqueiro e da gente humilde o aproxima da João Carrascoza, sobre quem falarei em breve; Aleilton (e Carrascoza) tem habilidade incomum de provocar e retratar certa riqueza interior em pessoas simples, geralmente tidas como massificadas e de sensibilidade embotada. Sete autores, sete pontos de partida distintos. Só nos resta agora torcer para que comecem a trilhá-los condignamente —transformando cada passo numa surpresa para o leitor.
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Nas últimas décadas, depois do modernismo e do concretismo, não se viu no Brasil nenhum movimento estético bem definido. O que, na minha opinião, é muito bom. O que há hoje (não só na prosa curta, mas também em todos os demais setores artísticos) é a diversificação de tendências difíceis de serem agrupadas sob rótulos genéricos. Apesar disso, criou-se o hábito a meu ver estéril de rotular a produção ficcional pura e simplesmente ou de urbana ou de regional. Como os próprios termos indicam, literatura urbana é a que trata de cenários e personagens metropolitanos, dos conflitos decorrentes da superpopulação, envolvendo pessoas geralmente niilistas e autodestrutivas. A literatura regional, em contrapartida, lida com tudo o que se passa fora dos grandes centros habitacionais, com as miudezas do povo de pequenos municípios e vilas do interior do país: regiões de fauna e flora quase que medievais, onde ainda existe forte vínculo entre o homem e a terra. Não tenho nada contra esse tipo de demarcação territorial. Ela nos ajuda a categorizar, a compartimentar a produção ficcional não só do passado recente, mas principalmente do presente — desse momento tão fluido, que nos escapa das mãos. Mas não há como negar que a brincadeira das etiquetas fica mais interessante quando incrementada. Partindo de pressupostos bipolares, dialéticos, poderíamos extrapolar os gêneros urbano e regional e sair à procura de outros mais condizentes com nosso tempo, tais como: literatura hedonista e literatura altruísta, consciente e inconsciente, analítica e sintética, física e metafísica, biológica e anímica, objetiva e subjetiva, pacifista e belicista, teísta e ateísta, monológica e dialógica, figurativa e abstrata, racional e emocional, masculina e feminina, e assim por diante. Brincadeiras à parte, penso ser conveniente, a fim de expor o principal caminho que o conto brasileiro tomou nos últimos anos, lançar mão do famoso dualismo nietzschiano, que divide o mundo em dois elementos básicos: o apolíneo e o dionisíaco.
O curioso é que, se observarmos os pontos altos que a narrativa curta brasileira atingiu nos últimos cem anos, fica fácil ver que o que se deu foi uma passagem gradual do apolíneo para o dionisíaco, na preferência do escritor rasileiro. Enquanto Urupês (1918) de Monteiro Lobato, Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) de Antônio de Alcântara Machado, Sagarana (1946) de Guimarães Rosa e Contos novos (1947) de Mário de Andrade nutrem-se da dicção racional típica do realismo, a partir d’O ex-mágico (1947) de Murilo Rubião, dos Contos do imigrante (1956) de Samuel Rawet e dos Cadernos de João (1957) de Anibal Machado, essa situação começa a mudar. Doses maciças de irracionalidade passam a ser injetadas na trama e na sintaxe. O fluxo de consciência é adotado largamente e a prosa torna-se menos racional, mais ligada ao onírico e ao inconsciente. Pouco a pouco até mesmo as normas gramaticais, até então absolutas, deixam de ser respeitadas, como por exemplo em Os cavalinhos de Platimplanto (1959) de José J. Veiga, Laços de família (1960) de Clarice Lispector, Histórias escolhidas (1961) de Lygia Fagundes Telles e Ficções (1977) de Hilda Hilst. Mesmo onde certa frieza estilística é mantida, como é o caso das Novelas nada exemplares (1959) de Dalton Trevisan e d’Os prisioneiros (1963) de Rubem Fonseca, a supervalorização da violência e do sexo, dos instintos mais baixos do ser humano, em suma, me faz pensar se não seria isso também uma possibilidade anti-realista, uma outra espécie de radiografia do irracional.
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Uma rápida passada de olhos pelos contos de Luiz Ruffato, Marçal Aquino, João Carrascoza, Jorge Pieiro e Marcelo Mirisola — os cinco contistas que pretendo lhes apresentar hoje — já é o suficiente para se perceber que, nos tempos correntes, o espírito dionisíaco encampou totalmente o modo de escrever destes autores. Se, por um lado, ainda sobra algum espaço — pequeno! — para o discurso apolíneo nos textos de Aquino e Carrascoza, por outro ele foi completamente excluído dos de Ruffato, Pieiro e Mirisola. Deu-se entre os escritores da geração anterior à minha um fenômeno curioso de negação do modelo cientificista, aristotélico-cartesiano, do mundo. Essa geração, que se viu obrigada a produzir literatura em porões, sob a sombra da ditadura militar que impôs o AI-5 e sufocou a cultura brasileira durante vinte anos, de 1964 a 1984, pôs em cheque a mente positivista. A capacidade do homem de, por intermédio da razão, estabelecer um mundo justo e confortável para nossa espécie foi questionada. Todo o sangue que correu nas guerrilhas e nas prisões brasileiras, durante a ditadura, alimentou tanto os autores determinados a escrever o mais abertamente possível sobre o momento político presente — Ignácio de Loyola Brandão, Moacyr Scliar, Márcio Souza, Domingos Pellegrini Jr. — quanto os determinados a falar por metáforas e hipérboles — Sérgio Sant’Anna, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca.
É justamente essa estética antiiluminista, cujas origens remontam ao romantismo e às suas conseqüências naturais, o simbolismo, o dadaísmo e o surrealismo, que vai se apresentar como a impressão digital do novo conto brasileiro.
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Luiz Ruffato, mineiro de Cataguases, nasceu em 1961 e publicou dois livros de narrativas curtas: História de remorsos e rancores e (os sobreviventes). Juntas, as duas coletâneas somam treze contos ambientados quase que exclusivamente na cidade de origem do escritor. A marca que primeiro chama a atenção nas histórias de Ruffato são os ganchos que ligam um conto ao outro, transformando os dois livros no que eu chamaria de Crônicas de Cataguases. Como costuma ocorrer em Balzac e em García Márquez, os protagonistas de um determinado conto passam a atuar como meros coadjuvantes no conto seguinte, e vice-versa. Com isso, ao final da leitura de ambos os livros, além dos remorsos e rancores individuais desenha- se diante do leitor o cenário ora trágico ora cômico de uma pequena cidade mineira.
Os heróis de Ruffato, retratista lírico por excelência, são a gente minúscula (se real ou se imaginária, pouco importa) que, por ser muito maior do que Cataguases, é antes de tudo a gente brasileira. Chamam-se João, Vanin, Zazá, Zé Bundinha, Zé Pinto, Bibica, Zunga, Jorge Pelado, Dusanjos, Alemão, Luzimar, Badeco e Geraldo da Farmácia. Moram em barracos ou em casas humildes, não têm sobrenome nem grandes ambições. Porém, cuidado: não estamos falando de nenhum tipo de neo-realismo, mas de modernismo puro. Ruffato não é um escritor politicamente engajado nem um defensor da literatura social. A condição miserável de suas personagens vincula-se, sim, ao tipo de arte que valoriza o descamisado, o sem-teto, o massacrado pelas instituições burguesas, mas a forma de narrar adotada por Ruffato vai contra o simplismo demagógico exigido pela literatura de denúncia social. O biscoito fino deste contista não é para o paladar pouco sofisticado das massas. Para falar das agruras de um ex-presidiário, de uma prostituta, de biscateiros, dos operários de uma tecelagem, dos favelados do Beco do Zé Pinto, Ruffato faz largo uso da gíria, do fluxo de consciência, das grandes sentenças entre parênteses, do negrito e do itálico (para distinguir a voz de diferentes narradores), das idas e vindas no tempo, da fragmentação do discurso realista. Ao evitar todo o tipo de maniqueísmo, ele consegue representar magnificamente o momento estilhaçado em que vivemos, sem ser piegas ou populista.
Um bom exemplo dessa técnica é o conto O segredo, um dos mais longos de Ruffato. Esta narrativa, dividida em vinte e cinco pequenos capítulos, apresenta de maneira muito divertida o desvario de um professor solteirão e paranóico que, por razões pouco claras, vê a própria vida, antes pacata e medíocre, ir perdendo o prumo. Numa das melhores cenas do conto, o professor é arrastado por mãos grotescas até o coreto de uma praça, onde é julgado e condenado por toda a população da cidade. Os capítulos são na verdade fragmentos — rápidas anotações de sonhos, de lembranças, da rotina doméstica, de diálogos interrompidos. No entanto, nenhuma dessas lascas pontiagudas está fora do lugar. Como num mosaico, todas elas têm razão de ser: indicar a grande revelação — o segredo do título — no fragmento final.
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Marçal Aquino, paulista, nasceu em 1958. Antes de lançar seu primeiro livro de contos, As fomes de setembro, publicou dois volumes de poesia e três novelas juvenis. As fomes de setembro trazem narrativas marcadamente suburbanas, cheias de ironia e lirismo. Já a segunda coletânea de contos, Miss Danúbio, e a terceira, O amor e outros objetos pontiagudos, deslocam o cenário geográfico da metrópole para os rincões da América Latina (cujos limites se sobrepõem), e confirmam o talento de Aquino para a narrativa curta especificamente voltada para o cotidiano das estradas, dos descampados e das fronteiras. Nessas histórias feitas de lances rápidos, de diálogos cortantes e desenlaces surpreendentes, é fácil reconhecer elementos da literatura policial e principalmente do cinema, gênero artístico tão caro ao autor, também ele roteirista cinematográfico. Por isso a economia de meios ao definir um ambiente (geralmente espeluncas e puteiros), um grupo de personagens (prostitutas e assassinos) e uma trama (um ajuste de contas, um adultério). Certo clima de final dos tempos, de ajuste de contas com Deus e o diabo, circunda as personagens tipicamente sul-americanas dos dois últimos livros de Aquino. A moral e a ética que as move são as do submundo poeirento dos vilarejos do interior do Brasil, locais distantes de qualquer núcleo administrativo, às vezes sem energia elétrica, sem televisão e conseqüentemente sem indústria cultural.
Para narrar o périplo desses expatriados, como já disse, Aquino faz uso, sempre, de períodos curtos e de estocadas fulminantes. A ignorância, o ódio, o sexo, a vingança, o crime, a traição seguida da execução do traidor são uma constante em seus contos. Para verificar isso, basta ler Matadores, conto que depois de sua publicação se transformou num dos melhores longa- metragens brasileiros da última década. Nele, dois matadores de aluguel, Alfredão e um jovem cujo nome não conhecemos (um mestre e um aprendiz, simplificando as coisas), encontram-se num bar de beira de estrada, freqüentado por caminhoneiros e prostitutas bolivianas, paraguaias e nordestinas. Estão aí há dias, a espera de uma suposta vítima que não chega. É justamente essa espera, feita de confidências e lembranças, que aos poucos vai envolvendo e sufocando o leitor, até o arremate inesperado. O estilo de Aquino é simples e direto, sem espaço para subjetivismos. Como numa boa trama detetivesca, ele deita todas as cartas na mesa menos a última, que contém o destino dos protagonistas. Dividido em quatro capítulos, o narrador onisciente de Matadores salta da espera no bar para alguns fatos que aconteceram muito antes, envolvendo outro matador, de nome Múcio, antigo parceiro de Alfredão. Desse ponto o narrador volta para o bar, a fim de encerrar a espera e também a ação que está se dando no momento presente. Em seguida, pula novamente para a história de Múcio, para os instantes finais do relato de seu último dia de vida, encerrando-o de maneira que lance luz em tudo o que veio sendo narrado até aqui.
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João Carrascoza, nascido em 1962, é autor de livros infantis, redator publicitário e professor universitário. A palavra lirismo já foi usada duas ou três vezes neste depoimento — talvez até mesmo de forma leviana, pois é nos contos deste paulista de Cravinhos que ela adquire valor máximo. Sua prosa é intimista, de tons suaves e ternos. Tanto nas narrativas de Hotel solidão quanto nas d’O vaso azul, o que se vê são pessoas comuns, imersas na banalidade do cotidiano, porém flagrados — pessoas e cotidiano — no instante em que começam a sofrer as agitações de um vislumbre epifânico. O primeiro conto que li deste autor, Caçador de vidro, justamente o que abre o livro de estréia de Carrascoza, conseguiu provocar em mim o mesmo sentimento de absoluto, de vida além da vida, que os demais só viriam a reforçar. O conto mostra uma cena pueril: um pai e um filho de sete anos, num voyage a cem quilômetros por hora num dia ensolarado. Seguem, os dois, na direção da cidade dos vidros, e essa designação, “cidade dos vidros”, já é o primeiro passo na direção da revelação mítica e mística, pois com ela Carrascoza transforma um local sem muitos atrativos, onde há algumas fábricas de vidro, numa construção d’As mil e uma noites, pelo menos aos olhos da personagem mirim e do leitor.
João Carrascoza é um lapidador de sentenças, orações, frases, sempre pronto a revelar os vários sentidos de uma palavra ou imagem. Sua escrita é de relojoeiro, de filigranista. É quase sempre do contato entre duas pessoas desconhecidas — num aeroporto, numa viagem marítima, numa avenida sob a chuva — que ele extrai a revelação mística de que falei acima. Tais desconhecidos podem muito bem ser uma mãe e seu filho, como em O vaso azul, ou um marido e sua esposa, como em Iluminados. Este conto particularmente me é muito caro, por ser de uma delicadeza ímpar. Marido e mulher, acomodados no sofá e na rotina de mais um anoitecer, vêem-se subitamente pegos por um blecaute. O que, nas mãos de outro autor, poderia transformar-se numa cena tensa e angustiada, nas de Carrascoza toma o caminho da sensibilidade, dos detalhes íntimos e sutis. Não há gritos, nem revelações hediondas, e muito menos um crime passional. Há a ternura redescoberta, iluminada pela chama das velas, pela luz de pequenos hábitos esquecidos. O casal se ama no escuro, como já não se amava há muito tempo. Em seguida brinca, canta e ri, como as crianças que um dia foram e das quais não se lembravam mais. Isso sem jamais resvalar no piegas ou na retórica de gosto duvidoso.
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A produção do cearense Jorge Pieiro, nascido em 1961, foi aos poucos sendo disseminada pelo próprio autor, quer na forma de livros autoeditados, quer na de boletins eletrônicos distribuídos via Internet a todos os interessados. Professor de literatura, Pieiro tem dois livros de poemas, um de ensaios e dois de contos (de contemas, que é como gosta de denominar suas narrativas curtas): Fragmentos de Panaplo, de 1989, e Caos portátil, de 1999. Na verdade, seus contos têm características híbridas, com elementos trazidos principalmente da poesia. São textos muito curtos, o maior não tendo mais do que duas páginas, de rico conteúdo simbólico e estrutura surrealista. O último de seus livros, Caos portátil, enfeixa trinta e quatro dessas aventuras oníricas e uma novela intitulada Episódios delirantes. Pieiro gosta de trabalhar com ferramentas de corte e solda na microestrutura do discurso. Ou seja, ele, a gramática em uma mão, a tesoura e o tubo de cola noutra, recorta orações e vocábulos a fim de construir sentenças que jamais se completam, cheias de interrupções e atalhos. O resultado é sempre caleidoscópico, com cheiro de escrita automática desautomatizada. Suas tramas parecem se passar em ambientes corriqueiros, na praça e nas residências simples de pequenos municípios do nordeste com aspecto mais de cidades fantasmas. Suas personagens são gente triste, desterrada, com um pé no mundo dos espíritos. Seu narrador, uma entidade alucinada, nem macha nem fêmea, com um olho de água e outro de fogo. Percebe-se que toda a tentativa de esboçar e comentar a prosa deste escritor redunda em definições pouco precisas e completamente subjetivas. Não conheço outra forma de fazer justiça a seu talento. O conto Meu tio e eu, por exemplo. Como sintetizá-lo, sem correr o risco de tornar toda a síntese banal? O tom do sobrinho-narrador é o tom nostálgico e melancólico dos que recordam um passado edênico, muito comum nos autores dados a reconstruir, por meio da prosa, as delícias da própria infância. O tio, em contrapartida, é o arlequim, o bufão, o mago, o endemoninhado dos nossos sonhos e pesadelos. É o porco, ingênuo e carinhoso, que almeja ser Deus. Mais não digo, para não estragar a surpresa da leitura. Em outro conto, O outro totem, um homem com cara triste perambula pelas ruas carregando uma rosa de plástico, a procura de sabe-se lá o quê. A todo momento ele entra e sai de multidões que parecem estar lá apenas para serem invadidas e abandonadas por essa figura de circo dos horrores. A possibilidade de um desfecho amoroso se insinua na metade da narrativa, mas o adocicado final feliz, cheio de risos e de sonhos-de-valsa, jamais foi lugar- comum nos contos de fada de Pieiro.
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Marcelo Mirisola, paulista nascido em 1966, é o mais dionisíaco dos contistas desse grupo. Os dois livros de contos por ele publicados, Fátima fez os pés para mostrar na choperia e O herói devolvido, apresentam ao leitor mais de cinqüenta narrativas em que um único narrador — alter ego de Mirisola — relata as experiências mais escabrosas que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse narrador escatológico e debochado faz uso da linguagem chula distorcida pela ironia e pelo fino sarcasmo. Suas histórias, como as dos beatnicks (com quem Mirisola vive sendo comparado) não têm começo nem fim, não passando às vezes de mera colagem de episódios arbitrariamente justapostos. Mas a maneira muito particular de escrever — numa palavra demodê: o estilo — de Mirisola faz com que essas colagens nos pareçam naturais, equilibradas, quando na verdade o desequilíbrio e a desarmonia — estandartes da literatura dionisíaca — são o que de fato sustentam suas narrativas. A escrita deste contista é confessional e caudalosa, nunca em linha reta, sempre em ziguezague. E trata-se de técnica narrativa tão original que, depois de ler três ou quatro contos, poucos serão os que não reconhecerão uma página deste autor, sem a assinatura, quando diante dela. Nos contos de Fátima e do Herói a perversão sexual — a cópula frustrada dos alucinados — é o tema básico em torno do qual giram muitas outras perversões. A prosa é tão contundente e as peripécias narradas são tão terríveis que é difícil não se chocar com o que se está lendo. A existência de Mirisola seria impossível no período da ditadura militar. Ele, assim como os beatnicks, é um típico fruto da democracia, ou melhor: dos excrementos que a democracia fatalmente produz.
O conto mais perturbador de Mirisola é, na minha opinião, Basta um verniz para ser feliz. Sempre é bom lembrar que ele tem um texto sobre um ginecologista que abusa de suas pacientes adolescentes, e outro sobre um débil mental que é usado como objeto sexual dos moradores de uma rua. São páginas sádicas, terríveis. Mas Basta um verniz, além de ser extremamente imoral, traz o narrador mirisoliano no auge de sua forma. E é um conto curto, curtíssimo, de quatro páginas e meia. Nele, a classe média brasileira, suas mazelas e o avançado processo de decomposição em que se encontra são definidos com poucas pinceladas, todas carregadas de humor grotesco. A primeira linha logo nos puxa para o coração da família Duarte, cujo patriarca, Duarte (é claro), executivo bem-sucedido que se gaba de gastar “mil dólares por mês com a educação dos filhos”, está tendo um caso com outro homem. E sua esposa está tendo um caso com outra mulher. E seu filho é bicha e sua filha é uma biscate. A família inteira adora o narrador, que no entanto a odeia, mas se faz de confidente de todos apenas para pegar dinheiro emprestado. E assim vai. Não fica pedra sobre pedra. Uma obra-prima.
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Gostaria de encerrar de maneira fulminante. Ou seja, em silêncio. Assim, o que ficará no ar será apenas o cheiro da pólvora desses jovens prosadores em início de carreira, que, por isso mesmo, não economizam munição. Mas antes do silêncio, um último gesto arrebatado, tão-só para unir as duas pontas que até agora permaneceram soltas: a do dionisíaco e a do apocalíptico. Proponho, em nome de todos os xamãs que já pisaram o solo da terra brasilis, que a partir de agora a primeira categoria seja substituída pela segunda, que a postura apocalíptica deixe de ser antagônica à do otimista e passe a caracterizar o vigoroso passo da literatura brasileira contemporânea. Dessa forma, há boas chances de que cada autor continue dono do seu apocalipse particular. Nomes faltaram. Nomes sempre faltam, daí a impossibilidade da elaboração de um painel coeso e harmônico do novo conto brasileiro. Quemconhece um pouco do que os novos autores estão publicando — e foisuficientemente paciente para me acompanhar até aqui — deve estar experimentando certa frustração. Afinal, onde ficam as Aberrações, de Bernardo Carvalho, os Contos tortos, de Airton Paschoa, O vôo da trapezista, de Amilcar Bettega Barbosa, e as 100 coisas, de Fernando Bonassi? Onde ficam as Anotações durante o incêndio, de Cíntia Moscovich, Aquidauana, de Mauro Pinheiro, Cada um cada um, de Sérgio Fantini, e a Ronda noturna, de Cadão Volpato? Onde ficam O visitante noturno, de Carlos Ribeiro, Um pouco mais de swing, de João Batista Melo, Brincar com armas, de Pedro Salgueiro, e, por que não, Naquela época tínhamos um gato, de Nelson de Oliveira? Tudo o que posso dizer é que a asserção que dá início a este pronunciamento se mostrou, no final, não um recurso retórico e muito menos um blefe a fim de impressionar a audiência, mas a mais pura verdade. Minha apresentação foi apenas parcial, não passando de simples depoimento pessoal sobre os autores que conheço e admiro. Tentar transformar este depoimento num estudo que ambicionasse cartografar o novo conto brasileiro, seria cair numa cilada. Continuo não crendo que tal empreendimento seja passível de ser levado a cabo neste momento. Antes do tão aguardado silêncio, um convite ao apocalipse. Toda crítica é, em suma, um brinquedo de armar. Convido o leitor a invadir livrarias e, conseqüência lógica, a montar sua própria constelação de novos contistas. Ao silêncio, enfim!
P.S.: Quatro dos cinco autores destacados publicaram novos trabalhos depois de 2000: Eles eram muitos cavalos, romance de Luiz Ruffato; Faroestes (contos) e O invasor (novela) de Marçal Aquino; Duas tardes, contos de João Carrascoza, e O azul do filho morto, romance de Marcelo Mirisola.
As principais impressões aqui anotadas foram confirmadas por mais esses livros.
Autores e livros
Ademir Assunção
A máquina peluda, Ateliê Editorial, 1997.
Airton Paschoa
Contos tortos, Nankin Editorial, 1999.
Aleilton Fonseca
Jaú dos bois, Relume Dumará, 1997.
Altair Martins
Como se moesse ferro, VS Editora, 2000.
Bernardo Carvalho
Aberrações, editora Companhia das Letras, 1996.
Carlos Ribeiro
O homem e o labirinto, editora BDA Bahia, 1995.
O visitante noturno, Fundação Cultural da Bahia, 2000.
João Batista Melo
As baleias de Saguenay, editora Rocco, 1997.
Um pouco mais de swing, editora Rocco, 1999.
João Anzanello Carrascoza
Hotel solidão, editora Escritta, 1997.
O vaso azul, editora Ática, 1999.
Jorge Pieiro
Fragmentos de Panaplo, editora Letra e Música, 1989.
Caos portátil, editora Letra e Música, 1999.
José Mucinho
O sucesso não acontece no meu caso, editora ComArte, 2000.
Luiz Ruffato
Histórias de remorsos e rancores, editora Boitempo, 1998.
(os sobreviventes), editora Boitempo, 2000.
Marçal Aquino
As fomes de setembro, editora Estação Liberdade, 1991.
Miss Danúbio, editora Escritta, 1997.
O amor e outros objetos pontiagudos, Geração Editorial, 1999.
Marcelino Freire
Angu de sangue, Ateliê Editorial, 2000.
Marcelo Mirisola
Fátima fez os pés para mostrar na choperia, editora Estação
Liberdade, 1998.
O herói devolvido, Editora 34, 2000.
Michel Laub
Não depois do que aconteceu, Instituto Estadual do Livro, 1998.
Nelson de Oliveira
Os saltitantes seres da lua, editora Relume Dumará, 1997.
Naquela época tínhamos um gato, editora Companhia das Letras, 1998.
Treze, Edições Ciência do Acidente, 1999.
Às moscas, armas!, Coleção Catatau, 2000.
Ronaldo Bressane
Os infernos possíveis, editora ComArte, 2000.
Roney Cytrynowicz
A vida secreta dos relógios, editora Scritta, 1994.
Sérgio Rodrigues
O homem que matou o escritor, editora Objetiva, 2000.