Preciosidades

sábado, 28 de julho de 2012

Descrição de Imagem. Heiner Muller

Heiner Muller (1929-1995)
Ou Descrição de uma imagem.

Uma paisagem entre estepe e savana, o céu de um azul prussiano, duas nuvens imensas flutuando lá dentro, como que unidas por esqueletos de arame, em todo caso de estrutura desconhecida, a maior, da esquerda, poderia ser um animal de borracha de um parque de diversões que se desgarrou de seu guia, ou um pedaço da Antártida em seu vôo de regresso, no horizonte uma serra plana, à direita na paisagem uma árvore, num olhar mais preciso são três árvores altas distintas em forma de cogumelo, tronco com tronco, talvez de uma raiz, a casa no primeiro plano mais produto industrial que manual, provavelmente concreto: uma janela, uma porta, o telhado coberto com a folhagem da árvore em frente que cresce sobre a casa, ela pertence a uma outra espécie que o grupo de árvores no plano posterior, seu fruto é aparentemente comestível, ou próprio para envenenar convidados, uma taça de vidro sobre uma mesa de jardim, ainda meio na sombra da copa da árvore, oferece seis ou sete exemplares da fruta que se parece com limão, pela posição da mesa, uma peça grosseira de trabalho manual, as pernas cruzadas são troncos de bétula nova e tosca, pode-se concluir que o sol, ou seja o que for que lança luz sobre esse lugar, no momento da imagem está no zênite, pode ser que o SOL esteja lá sempre e NA ETERNIDADE: que ele se movimente, não se pode provar pela imagem, as nuvens também, se é que são nuvens, flutuam talvez no lugar, o esqueleto de arame sua amarração numa tabuleta azul manchada com a tirânica inscrição CÉU, num galho de árvore um pássaro, a folhagem encobre sua identidade, pode ser um abutre ou um pavão ou um abutre com cabeça de pavão, olhar e bico apontados para uma mulher que domina a metade direita da imagem, sua cabeça divide montanhas, o rosto é suave, muito jovem, o nariz longo demais, um inchaço na base, talvez de um soco, o olhar no chão, como se não pudesse esquecer uma imagem e ou não quisesse ver outra, o cabelo comprido de mechas, loiro ou cinza esbranquiçado, a luz dura não diferencia, a roupa um casaco de pele esburacado, cortado para ombros mais largos, sobre uma camisa fina e gasta, provavelmente de linho, da qual em certo ponto da manga direita desfiada e muito larga um frágil antebraço ergue uma mão à altura do coração, ou seja do peito esquerdo, um gesto de defesa ou da língua dos surdos-mudos, a defesa vale um horror conhecido, o golpe empurrão estocada aconteceu, o tiro disparado, a ferida não sangra mais, a repetição cai no vazio, onde o pavor não tem lugar, o rosto da mulher torna-se legível, se a segunda suposição for correta, um rosto de rato, um anjo dos roedores, os maxilares moem cadáveres de palavras e detritos de fala, a manga esquerda do casaco dependurada em farrapos como após um acidente ou agressão de algo dilacerante, animal ou máquina, curioso que o braço não foi ferido, ou as manchas marrom na manga são sangue coagulado, o gesto da mão direita de dedos longos vale uma dor no ombro esquerdo, o braço tão solto dependurado na manga, porque ele está quebrado, ou uma ferida na carne o paralisou, o braço está cortado no pulso pela borda da imagem, a mão pode ser uma garra, um coto (talvez com sangue ressecado) ou um gancho, a mulher está até os joelhos sobre o nada, amputada pela borda da imagem, ou ela cresce do solo como o homem sai da casa e desaparece nele como o homem na casa, até que a movimentação interminável se instala, rompe o limite, o vôo, o motor das raízes chovendo pedaços de terra e água subterrânea, visível a cada olhar, quando o olho VIU TUDO pestanejando se fecha sobre a imagem, entre árvore e mulher a única e grande janela toda aberta, a cortina esvoaçando para fora, a tempestade parece sair da casa, nas árvores nenhum sinal de vento, ou a mulher atrai a tempestade que esperava por ela na cinza da lareira, ou a chama com sua aparição, o que ou quem foi queimado, uma criança, uma outra mulher, um amante, ou a cinza é seu próprio verdadeiro resto, o corpo emprestado da profundeza dos cemitérios, o homem no vão da porta, o pé direito ainda meio na soleira, o esquerdo já firme sobre o chão marrom manchado de grama, ressecado por um sol desconhecido, como um punho de caçador na mão direita do braço esticado segura um pássaro, bem onde se arranca a asa, a mão esquerda, de dedos tortos e trêmulos muito longos, acaricia a plumagem que o medo da morte arrufou, o bico do pássaro rasgado num grito silencioso para o observador, mudo também para o pássaro na árvores, ele não se interessa por pássaros, o esqueleto de seu congênere na parede interna de veios negros, visível pelo quadrilátero da janela, que ele não pode ver de seu lugar na árvore, para ele não teria mensagem, o homem sorri, seu passo é cambaleante, um passo de dança, não se pode concluir se ele já viu a mulher, talvez seja cego, seu sorriso a cautela dos cegos, ele vê com os pés, cada pedra que seu pé toca ri dele, ou o sorriso do assassino que vai ao trabalho, o que vai acontecer na mesa de pernas cruzadas com a fruteira cheia e o copo de vinho derrubado quebrado, onde ainda ondeia o resto de um líquido negro, que pingando sobre a mesa e além da borda se espalha sobre o chão embaixo da mesa e se abre em poças, a cadeira de espaldar alto à frente tem uma particularidade: suas quatro pernas estão amarradas a meia altura com um arame, como que a evitar que desabe, uma segunda cadeira está jogada à direita atrás da árvore, o espaldar quebrado, a proteção de arame só um Z, não um quadrilátero, talvez uma tentativa anterior de fixação, que peso quebrou a cadeira, desestabilizou a outra, um assassinato talvez, ou um ato sexual selvagem, ou os dois em um, o homem na cadeira, a mulher sobre ele, o membro dele em sua vagina, a mulher ainda carregada do peso da terra do túmulo de onde saiu para visitar o homem, da água subterrânea que seu casaco de pele escorre, seu movimento primeiro um balançar suave, depois um cavalgar impetuoso e progressivo, até que o orgasmo comprime as costas do homem contra o espaldar da cadeira, que cede estalando, as costas da mulher contra a quina da mesa derrubando o copo de vinho, a taça carregada de frutas desliza e, quando a mulher se lança para a frente, seus braços agarrando o homem, os braços dele sob o casaco de pele eles, ele no dela, ela cravada no pescoço dele, pára quase na borda outra vez, junto com a mesa, ou a mulher na cadeira, o homem de pé atrás dela, polegar com polegar as mãos dele em volta do pescoço dela, como na brincadeira à princípio, só os dedos médios se tocam, então, quando a mulher se empina contra o espaldar da cadeira, finca as unhas nos músculos dos braços dele, as veias de seu pescoço e de sua testa saltam, sua cabeça se enche de sangue tingindo o rosto vermelhoazul, suas pernas batem convulsivas no tampo de mesa, o copo do vinho entorna, a taça desliza, o estrangulador fecha o círculo, polegar com polegar, dedo com dedo, até que as mãos da mulher desabam dos braços dele e o leve estalar do pomo-de-adão ou da vértebra do pescoço indicam o final do trabalho, talvez agora, com o peso novamente morto, quando o homem recolher as mãos, o espaldar da cadeira ceda ou a mulher caia para frente com o rosto vermelhoazul sobre o copo de vinho, de onde o líquido escuro, vinho ou sangue, procura seu caminho no chão, ou sombra esfiapada no pescoço da mulher abaixo do queixo provém de um corte de faca, os fiapos o sangue seco da ferida da largura do pescoço, as mechas de cabelo à direita do rosto também pretas de sangue incrustado, rastro do assassino canhoto na soleira da porta, sua faca escreve da direita para a esquerda, ele vai precisar dela outra vez, ela entufa o forro de seu casaco, quando o copo partido se forma dos cacos e a mulher se aproxima da mesa, o pescoço sem cicatriz, ou será a mulher, o anjo sedento, que abre a mordidas a goela do pássaro e derrama no copo o sangue de sua garganta aberta, o alimento dos mortos, a faca não é para o pássaro, o rosto do homem tem a cor do chão até a altura dos olhos, testa e mão visíveis, a outra esconde o cabo na plumagem, são brancas como papel, no trabalho ao ar livre ele parece usar luvas, por que não no momento da imagem, e algo como um chapéu contra o astro quente, que ilumina a paisagem e desbota suas cores, qual será seu trabalho, abstraindo o homicídio talvez diário da mulher talvez diariamente ressurreta, nessa paisagem animais só surgem como nuvens, não há mão que os agarre, o pássaro na árvore é a última reserva, um chamariz o captura, inútil arrancar a grama, o SOL, talvez uma multiplicidade de SÓIS a queima, os frutos da árvore onde está o pássaro são rapidamente colhidos, teceram os dedos trêmulos do estrangulador a rede de aço em torno da cordilheira plana, de onde apenas um cume de montanha branco como papel ainda sobressai desprotegido, proteção contra o desmoronamento das pedras que se soltam do interior da terra nas caminhadas dos mortos, que são as pulsações furtivas do planeta a que a imagem se refere, proteção com alguma perspectiva talvez com o passar do tempo, quando o crescimento dos cemitérios, com o pequeno peso do provável assassino no umbral alcança seu limite, do pássaro na árvore rapidamente digerido, para seu esqueleto a parede tem lugar, ou o movimento dá a volta, quando todos estiverem mortos, o movimento dos túmulos na fúria da ressurreição, que expulsa as cobras da montanha, será a mulher de olhar furtivo e boca de ventosa uma MATA HARI do mundo subterrâneo, espiã que sonda as terras onde acontecerá a grande manobra, que cobre de carne os ossos famintos, a carne com pele, atravessada por veias que bebem o sangue do chão, as vísceras regressam do nada, ou o anjo está oco debaixo do vestido, porque a reserva de carne subtraída enterrada no chão não dá mais corpos, um DEDO PERVERSO que mortos seguram ao vento contra a polícia do céu, antecessora e NOIVA DO VENTO, que estira o vento onde habitam os inimigos naturais da ressurreição da carne, ele sopra qual tempestade na armadilha, a seta da cortina aponta para mulher, o assassino talvez também só um morto a trabalho, o extermínio dos pássaros sua missão (secreta), o passo de dança indolente anuncia o fim próximo do trabalho, talvez a mulher já esteja em seu caminho de regresso ao chão, grávida da tempestade, do sêmen do renascimento da explosão da ossada, ossos e estilhaços e medula, a provisão ao vento marca a distância dos pedaços, dos quais talvez, após a migração do fôlego o terremoto os explode através da pele do planeta, o TODO se reúne, a fecundação do astro pelos seus mortos, o primeiro sinal as nuvens com o esqueleto de arame, que na verdade é feito de nervos, que cobrem os ossos, ou de teias de aranha de medula óssea, como a trança sem raízes visíveis que se arrasta para cima do bangalô e já ocupa todo o seu interior até o teto, ou o emaranhado de arame das cadeiras, ou a rede que prega a cordilheira ao solo, ou tudo é diferente, a rede de aço o humor de um lápis descuidado, que nega a plástica das montanhas com um sombreado mal executado, talvez a arbitrariedade da composição siga um plano, a árvore sobre uma bandeja, as raízes cortadas, as árvores de outro tipo ao fundo são cogumelos de caule singularmente longos, vegetal de zona climática que não conhece árvores, como o bloco de cimento entrou na paisagem, nenhum vestígio de transporte ou veículo, EU FALEI PARA VOCÊ NÃO VOLTAR MORTO É MORTO, nenhum vestígio de arrasto marcado no solo, caído do CÉU, ou baixado com garra mecânica do ar respirável só pelos mortos e que é movida a partir de um ponto fixo no CÈU chamado além, é a cordilheira uma peça de museu, empréstimo de uma sala de exposições subterrânea, onde as montanhas são guardadas, porque em seu lugar natural impedem o vôo rasante dos anjos, a imagem um arranjo experimental, a rudeza do esboço uma expressão do desprezo pelas cobaias homem, pássaro, mulher, a bomba sanguínea do homicídio diário, homem contra pássaro e mulher, mulher contra pássaro e homem, pássaro contra mulher e homem, abastece o planeta com combustível, sangue a tinta, que descreve em cores sua vida de papel, seu céu também ameaçado de anemia pela ressurreição da carne, procurado: o vão no escoamento, o outro no retorno do mesmo, o gaguejar no texto sem fala, o buraco na eternidade, o ERRO talvez redentor: olhar distraído do assassino quando examina o pescoço da vítima sobre a cadeira coma as mãos, com o gume da faca, sobre o pássaro na árvore, no vazio da paisagem, hesitação perante o corte, o jato de sangue fecha os olhos, riso da mulher, que por um instante afrouxa o estrangulamento, faz tremer a mão com a faca, vôo mergulho do pássaro, engodado pelo brilho do gume, pouso sobre o crânio do homem, duas bicadas à direita e à esquerda, vertigem e urro dos cegos, sangue chispando no torvelinho da tempestade que procura a mulher, medo que o erro aconteça num piscar de olhos, a brecha de vista que se abre no tempo entre um olhar e outro, a esperança mora no gume de uma faca que com atenção crescente, logo fadiga, rota mais rápido, incertezas relampejantes na certeza do horror: O HOMICÍDIO é uma troca de sexos, ESTRANHO NO PRÓPRIO CORPO, a faca é a ferida, a nuca o machado, pertence ao plano a fiscalização falha, em que aparelho está presa a lente que suga as cores do olhar, em que órbita ocular está estirada a retina, quem OU O QUÊ pergunta pela imagem, MORAR NO ESPELHO, o homem com o passo de dança EU, meu túmulo seu rosto, EU a mulher com a ferida no pescoço, à direita e à esquerda nas mãos o pássaro partido, sangue na boca, EU O PÁSSARO, aquele que com a escrita de seu bico mostra ao assassino o caminho da noite, EU a tempestade gelada.

DESCRIÇÃO DE IMAGEM pode ser lida como um retoque em ALCESTE, que cita a peça nô KUMASAKA, o 11. canto da ODISSÉIA, OS PÁSSAROS de Hitchcock e A TEMPESTADE de Shakespeare. O Texto descreve uma paisagem vista de além-túmulo. A ação é livre, já que as seqüências são passado, explosão de uma lembrança numa estrutura dramática morta.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

As mãos com imagens. Costa Araújo por Joaquim Pulga


Nos canhenhos de assentos na antiquíssima Bracara Augusta consta seguramente o nascimento do José Augusto Costa Araújo, no ano de tal, filho de tal e tal. Sobre as suas mãos e sua rijeza estética, nada atestarão as folhas nutridas de pó. Sabemo-lo agora nós que te conhecemos a obra de muito tempo.

Não sei quando e se pela mão progenitora ou nos seus calcanhares, desceste ainda mais para sul do hemisfério inferior deste achatado globo. Eu, pela parte que me toca, penso que só lucraste com tal viagem, possivelmente, num barco voador ainda movido a hélices. E por lá medraste um ror de anos a fundir ritmos, cores, traços, expressões e outros condimentos que a quentura das Áfricas e Brasis vai desvendando a quem por lá se demora.

Depois, com os sinuosos acasos da vida, subiste para a África de cá (o Alentejo nas palavras poéticas do já desaparecido Rui Knopfli). E por aqui permaneces branqueando as melenas enquanto, com a regularidade de um relógio suíço, cobres com mansidão furiosa a traços e cores mirabolantes tudo quanto pensas propício para gravar o teu pictórico génio. Para isso tens no Alentejo um manancial inigualável. Tens nas ceifeiras alentejanas uma peculiar e arrimada sensualidade criativa. Até parece que nessa antiga labuta trocaste, por momentos, o pincel pela foice. Tal sensualidade que revejo in loco com os olhos que minha mãe me concedeu, dependurada, ali, no lado direito da parede onde me sento e escrevo mesmo agora sobre o mê Araújo, numa ofertada aguarela que desvenda uma jovem apetecivelmente descuidada, de ombros angulosos e duas luas cheias por seios donde se empinam rosáceos mamilos.
Costa Araujo - Acrylic on canvas


Enquanto olho as palavras já gravadas, passo a memória pelo pluralismo da tua obra. Do exotismo à Gauguin, pintado numa tela existente na tua oficina, à força que salta da tela que exibe uma matrona balzaquiana que tem uma mão brutalmente expressiva e uns olhos poderosos que dizem tudo sobre o trabalho das mãos com imagens do pintor.

Persevera sempre Araújo. O lápis, o pincel, a tinta, o papel e o que demais usas na tua arte, foram também as velhas ferramentas com que os ancestrais pedreiros-livres construíram um mundo harmonioso de criadores.

Joaquim Pulga

terça-feira, 3 de julho de 2012

O novo conto brasileiro. Por Nelson de Oliveira

Nelson de Oliveira

Convidado pela Universidad de Lima para expôr, durante o encontro La literatura en el siglo XXI: hablan los jóvenes, as características do novo conto brasileiro, logo percebo o perigo da empreitada. Como definir, de forma clara, algo multifacetado e fora de foco? O texto que se segue lido para um auditório composto de estudantes peruanos e jovens escritores de todos os países de língua hispânica e portuguesa, tenta se esquivar das armadilhas do tema proposto. Ou seja, tenta escapar à dogmatização. E, de quebra, procura esboçar os contornos de uma possível Geração 90 no conto brasileiro, razão pela qual só foram levadas em conta as coletâneas publicadas entre 1990 e 2000. A recém-lançada antologia Geração 90: manuscritos de computador, que traz ao grande público os melhores contistas brasileiros que estrearam no final do século XX, deve muito à tentativa de esboço que se segue.


O NOVO CONTO BRASILEIRO: APOCALIPSES

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O título deste comunicado, propositadamente bombástico, é uma falácia. Ele grita aos quatro ventos que o que será dito aqui é algo muito mais ambicioso do que de fato é. Afinal, o que se espera de alguém que se proponha a apresentar o novo conto brasileiro é que tal pessoa exponha um painel hegemônico e minucioso da narrativa curta que está sendo praticada hoje no Brasil. E isso é impossível. Primeiro porque há já algum tempo, desde que as escolas literárias se fragmentaram, está havendo uma diáspora estética e cada novo autor, longe de querer se associar a grupos mais ou menos coesos, está preferindo formar seu próprio clube de um só associado. Segundo porque, devido à vasta extensão do território nacional e ao precário sistema de distribuição de livros, o que se vê atualmente são ilhas literárias separadas por largas faixas de vácuo. Dessa maneira, já nos acostumamos a falar, mais do que em literatura brasileira, em literatura do sul, do sudeste, do centro-oeste, do norte e do nordeste. Todas muito diferentes, cada qual com suas próprias características e seus autores canonizados. Isso do ponto de vista da divisão política do país. Há outras divisões que merecem ser levadas em conta: a étnica e a sexual, principalmente. Já começa a engatinhar, aqui e ali, a literatura produzida pelas minorias: a dos negros, a dos índios, a dos homossexuais etc.

Por tudo isso, sou o primeiro a reconhecer que minha apresentação será apenas parcial, não passando, na melhor das hipóteses, de mero depoimento pessoal sobre os autores que conheço e admiro. Tentar transformar este depoimento num estudo mais sério, que ambicionasse cartografar o novo conto brasileiro, seria temerário. Também não creio que tal empreendimento seja passível de ser levado a cabo, neste momento, por quem quer que seja. Ele demandaria esforço e sensibilidade sobre-humanos, e, é claro, ferramentas teóricas que não excluíssem a produção das minorias citadas — em resumo, exigiria uma nova crítica.

Por razões que conhecemos bem, a literatura brasileira ainda é a literatura do homem branco, de classe média-alta, europeizado e heterossexual. Não é à toa que não há nenhuma jovem escritora no pequeno grupo sobre o qual comentarei a seguir. Também não há, nesse grupo, nenhum contista negro ou índio, nenhum contista homossexual (ao menos nenhum disposto a abrir mão do jargão francamente hetero). Como já disse, a produção literária brasileira segue o modelo europeu e norte-americano, que só recentemente começa a perceber a importância cultural de deixar falar outras vozes — a dos excluídos — se não quiser sofrer uma grande estagnação.

2

Sou, talvez, o último dos otimistas. E sofro todas as conseqüências que essa postura costuma trazer aos que, otimistas como eu, vivem num meio social quase que exclusivamente de apocalípticos. Apesar dos pesares, acredito piamente que nos últimos dez anos a literatura brasileira só fez crescer. Tanto na prosa quanto na poesia. Não estou dizendo que o número de leitores aumentou, nem que nossos livros passaram a ser mais traduzidos e respeitados no exterior. Isso de fato não aconteceu: a maior parte da população do país continua subnutrida e analfabeta, e nossos grandes autores continuam, na melhor das hipóteses, circunscritos aos limites do idioma português. Se há algum intercâmbio perceptível, ele se dá entre os países lusófonos, e só. Nem a Europa nem a América do Norte parecem interessadas no que está sendo feito aqui. Curiosamente, amigos meus residentes fora do país têm mais interesse pela produção local, seja ela francesa, alemã, americana ou canadense, do que pela vernácula — mas sempre é bom frisar que isso não é crime, é apenas uma constatação minha. Trocando em miúdos, quando o assunto é literatura o Brasil continua ocupando posição periférica, de mero consumidor.

Esse estado de coisas induz alguns a crer que a literatura brasileira não tem qualidades suficientes que a tornem produto de exportação. Os apocalípticos mais ortodoxos costumam dizer que não existe o que se convencionou chamar, da parte de otimistas como eu, de literatura brasileira. Tanto a prosa quanto a poesia que se produz hoje, no país, não passaria de arremedo raquítico do que de melhor se tem feito no resto do mundo economicamente desenvolvido. De qualquer maneira, tal posicionamento não condiz com os fatos. Ou porque o que se está produzindo hoje, no mundo economicamente desenvolvido, deixa muito a desejar, ou porque certa miopia tem impedido o leitor mais incrédulo de enxergar o apocalipse estético (o melhor que poderia haver) onde ele realmente está ocorrendo: a um palmo do nariz. É o que pretendo demonstrar a seguir, ao comentar a obra de cinco novos contistas brasileiros.

Para efeito de análise, optei por focalizar apenas os autores que, nascidos em torno de 1960, apesar de relativamente jovens já superaram o trauma do primeiro livro, e, no caso de Marçal Aquino, até mesmo do segundo. Sei muito bem que, procedendo dessa maneira, corro o risco de não fazer justiça a grandes promessas do conto brasileiro surgidas recentemente, como é o caso do gaúcho Altair Martins, do pernambucano Marcelino Freire, do mineiro Sérgio Rodrigues e do paulista Ronaldo Bressane, que estrearam este ano com primorosos livros de contos, e de Michel Laub, também gaúcho, Aleilton Fonseca, baiano, e Ademir Assunção, outro paulista, que, conhecido por sua poesia de excelente qualidade, publicou um livro de contos que não fica nada a dever ao restante de sua obra. O que não posso deixar de dizer é que cada um destes sete determinou e passou a seguir seu próprio caminho, distinto dos demais e de seus antecessores, fato muito raro em autores estreantes.

Os contos de Altair Martins, presentes em Como se moesse ferro, são longos e sinuosos, com vigorosas pinceladas do melhor surrealismo, como certas composições de teor místico e maravilhoso que hipnotizam e devoram a assembléia. Já os de Marcelino Freire, enfeixados em Angu de Sangue, são, ao contrário, enxutos e ríspidos, e por isso mesmo extremamente ácidos, quando não prenhes do lirismo azedo típico desta virada de século. Os de Sérgio Rodrigues, d’O homem que matou o escritor, e os de Ronaldo Bressane, d’Os infernos possíveis, fazem uso da metalinguagem, do pasticho, do reaproveitamento de histórias escritas por outros autores, tudo isso mesclado com o impacto do fantástico, no caso de Bressane, e do sexo e da violência, no caso de Rodrigues. Por sua vez A máquina peluda, de Ademir Assunção, lançada em 1998, também finca raízes no terreno da paródia e da metalinguagem, do texto que se volta sobre si mesmo para nos mostrar os absurdos que o discurso verbal, dogmático, costuma impingir aos que o utilizam. Não depois do que aconteceu, de Michel Laub, também publicado em 1998, quando o autor contava vinte e cinco anos, traz um conjunto de narrativas cuja epiderme ainda guarda o viço da juventude, fase da vida em que a gíria e a linguagem corrompida por estilhaços do inglês, típicas dos adolescentes, dão o tom aos vários mergulhos de natureza psicológica que compõem a obra. No pólo oposto temos os contos de Aleilton Fonseca, reunidos em Jaú dos bois, de 1997, cuja valorização do corriqueiro e da gente humilde o aproxima da João Carrascoza, sobre quem falarei em breve; Aleilton (e Carrascoza) tem habilidade incomum de provocar e retratar certa riqueza interior em pessoas simples, geralmente tidas como massificadas e de sensibilidade embotada. Sete autores, sete pontos de partida distintos. Só nos resta agora torcer para que comecem a trilhá-los condignamente —transformando cada passo numa surpresa para o leitor.

3

Nas últimas décadas, depois do modernismo e do concretismo, não se viu no Brasil nenhum movimento estético bem definido. O que, na minha opinião, é muito bom. O que há hoje (não só na prosa curta, mas também em todos os demais setores artísticos) é a diversificação de tendências difíceis de serem agrupadas sob rótulos genéricos. Apesar disso, criou-se o hábito a meu ver estéril de rotular a produção ficcional pura e simplesmente ou de urbana ou de regional. Como os próprios termos indicam, literatura urbana é a que trata de cenários e personagens metropolitanos, dos conflitos decorrentes da superpopulação, envolvendo pessoas geralmente niilistas e autodestrutivas. A literatura regional, em contrapartida, lida com tudo o que se passa fora dos grandes centros habitacionais, com as miudezas do povo de pequenos municípios e vilas do interior do país: regiões de fauna e flora quase que medievais, onde ainda existe forte vínculo entre o homem e a terra. Não tenho nada contra esse tipo de demarcação territorial. Ela nos ajuda a categorizar, a compartimentar a produção ficcional não só do passado recente, mas principalmente do presente — desse momento tão fluido, que nos escapa das mãos. Mas não há como negar que a brincadeira das etiquetas fica mais interessante quando incrementada. Partindo de pressupostos bipolares, dialéticos, poderíamos extrapolar os gêneros urbano e regional e sair à procura de outros mais condizentes com nosso tempo, tais como: literatura hedonista e literatura altruísta, consciente e inconsciente, analítica e sintética, física e metafísica, biológica e anímica, objetiva e subjetiva, pacifista e belicista, teísta e ateísta, monológica e dialógica, figurativa e abstrata, racional e emocional, masculina e feminina, e assim por diante. Brincadeiras à parte, penso ser conveniente, a fim de expor o principal caminho que o conto brasileiro tomou nos últimos anos, lançar mão do famoso dualismo nietzschiano, que divide o mundo em dois elementos básicos: o apolíneo e o dionisíaco.

O curioso é que, se observarmos os pontos altos que a narrativa curta brasileira atingiu nos últimos cem anos, fica fácil ver que o que se deu foi uma passagem gradual do apolíneo para o dionisíaco, na preferência do escritor rasileiro. Enquanto Urupês (1918) de Monteiro Lobato, Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) de Antônio de Alcântara Machado, Sagarana (1946) de Guimarães Rosa e Contos novos (1947) de Mário de Andrade nutrem-se da dicção racional típica do realismo, a partir d’O ex-mágico (1947) de Murilo Rubião, dos Contos do imigrante (1956) de Samuel Rawet e dos Cadernos de João (1957) de Anibal Machado, essa situação começa a mudar. Doses maciças de irracionalidade passam a ser injetadas na trama e na sintaxe. O fluxo de consciência é adotado largamente e a prosa torna-se menos racional, mais ligada ao onírico e ao inconsciente. Pouco a pouco até mesmo as normas gramaticais, até então absolutas, deixam de ser respeitadas, como por exemplo em Os cavalinhos de Platimplanto (1959) de José J. Veiga, Laços de família (1960) de Clarice Lispector, Histórias escolhidas (1961) de Lygia Fagundes Telles e Ficções (1977) de Hilda Hilst. Mesmo onde certa frieza estilística é mantida, como é o caso das Novelas nada exemplares (1959) de Dalton Trevisan e d’Os prisioneiros (1963) de Rubem Fonseca, a supervalorização da violência e do sexo, dos instintos mais baixos do ser humano, em suma, me faz pensar se não seria isso também uma possibilidade anti-realista, uma outra espécie de radiografia do irracional.

4

Uma rápida passada de olhos pelos contos de Luiz Ruffato, Marçal Aquino, João Carrascoza, Jorge Pieiro e Marcelo Mirisola — os cinco contistas que pretendo lhes apresentar hoje — já é o suficiente para se perceber que, nos tempos correntes, o espírito dionisíaco encampou totalmente o modo de escrever destes autores. Se, por um lado, ainda sobra algum espaço — pequeno! — para o discurso apolíneo nos textos de Aquino e Carrascoza, por outro ele foi completamente excluído dos de Ruffato, Pieiro e Mirisola. Deu-se entre os escritores da geração anterior à minha um fenômeno curioso de negação do modelo cientificista, aristotélico-cartesiano, do mundo. Essa geração, que se viu obrigada a produzir literatura em porões, sob a sombra da ditadura militar que impôs o AI-5 e sufocou a cultura brasileira durante vinte anos, de 1964 a 1984, pôs em cheque a mente positivista. A capacidade do homem de, por intermédio da razão, estabelecer um mundo justo e confortável para nossa espécie foi questionada. Todo o sangue que correu nas guerrilhas e nas prisões brasileiras, durante a ditadura, alimentou tanto os autores determinados a escrever o mais abertamente possível sobre o momento político presente — Ignácio de Loyola Brandão, Moacyr Scliar, Márcio Souza, Domingos Pellegrini Jr. — quanto os determinados a falar por metáforas e hipérboles — Sérgio Sant’Anna, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca.

É justamente essa estética antiiluminista, cujas origens remontam ao romantismo e às suas conseqüências naturais, o simbolismo, o dadaísmo e o surrealismo, que vai se apresentar como a impressão digital do novo conto brasileiro.

5

Luiz Ruffato, mineiro de Cataguases, nasceu em 1961 e publicou dois livros de narrativas curtas: História de remorsos e rancores e (os sobreviventes). Juntas, as duas coletâneas somam treze contos ambientados quase que exclusivamente na cidade de origem do escritor. A marca que primeiro chama a atenção nas histórias de Ruffato são os ganchos que ligam um conto ao outro, transformando os dois livros no que eu chamaria de Crônicas de Cataguases. Como costuma ocorrer em Balzac e em García Márquez, os protagonistas de um determinado conto passam a atuar como meros coadjuvantes no conto seguinte, e vice-versa. Com isso, ao final da leitura de ambos os livros, além dos remorsos e rancores individuais desenha- se diante do leitor o cenário ora trágico ora cômico de uma pequena cidade mineira.

Os heróis de Ruffato, retratista lírico por excelência, são a gente minúscula (se real ou se imaginária, pouco importa) que, por ser muito maior do que Cataguases, é antes de tudo a gente brasileira. Chamam-se João, Vanin, Zazá, Zé Bundinha, Zé Pinto, Bibica, Zunga, Jorge Pelado, Dusanjos, Alemão, Luzimar, Badeco e Geraldo da Farmácia. Moram em barracos ou em casas humildes, não têm sobrenome nem grandes ambições. Porém, cuidado: não estamos falando de nenhum tipo de neo-realismo, mas de modernismo puro. Ruffato não é um escritor politicamente engajado nem um defensor da literatura social. A condição miserável de suas personagens vincula-se, sim, ao tipo de arte que valoriza o descamisado, o sem-teto, o massacrado pelas instituições burguesas, mas a forma de narrar adotada por Ruffato vai contra o simplismo demagógico exigido pela literatura de denúncia social. O biscoito fino deste contista não é para o paladar pouco sofisticado das massas. Para falar das agruras de um ex-presidiário, de uma prostituta, de biscateiros, dos operários de uma tecelagem, dos favelados do Beco do Zé Pinto, Ruffato faz largo uso da gíria, do fluxo de consciência, das grandes sentenças entre parênteses, do negrito e do itálico (para distinguir a voz de diferentes narradores), das idas e vindas no tempo, da fragmentação do discurso realista. Ao evitar todo o tipo de maniqueísmo, ele consegue representar magnificamente o momento estilhaçado em que vivemos, sem ser piegas ou populista.

Um bom exemplo dessa técnica é o conto O segredo, um dos mais longos de Ruffato. Esta narrativa, dividida em vinte e cinco pequenos capítulos, apresenta de maneira muito divertida o desvario de um professor solteirão e paranóico que, por razões pouco claras, vê a própria vida, antes pacata e medíocre, ir perdendo o prumo. Numa das melhores cenas do conto, o professor é arrastado por mãos grotescas até o coreto de uma praça, onde é julgado e condenado por toda a população da cidade. Os capítulos são na verdade fragmentos — rápidas anotações de sonhos, de lembranças, da rotina doméstica, de diálogos interrompidos. No entanto, nenhuma dessas lascas pontiagudas está fora do lugar. Como num mosaico, todas elas têm razão de ser: indicar a grande revelação — o segredo do título — no fragmento final.

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Marçal Aquino, paulista, nasceu em 1958. Antes de lançar seu primeiro livro de contos, As fomes de setembro, publicou dois volumes de poesia e três novelas juvenis. As fomes de setembro trazem narrativas marcadamente suburbanas, cheias de ironia e lirismo. Já a segunda coletânea de contos, Miss Danúbio, e a terceira, O amor e outros objetos pontiagudos, deslocam o cenário geográfico da metrópole para os rincões da América Latina (cujos limites se sobrepõem), e confirmam o talento de Aquino para a narrativa curta especificamente voltada para o cotidiano das estradas, dos descampados e das fronteiras. Nessas histórias feitas de lances rápidos, de diálogos cortantes e desenlaces surpreendentes, é fácil reconhecer elementos da literatura policial e principalmente do cinema, gênero artístico tão caro ao autor, também ele roteirista cinematográfico. Por isso a economia de meios ao definir um ambiente (geralmente espeluncas e puteiros), um grupo de personagens (prostitutas e assassinos) e uma trama (um ajuste de contas, um adultério). Certo clima de final dos tempos, de ajuste de contas com Deus e o diabo, circunda as personagens tipicamente sul-americanas dos dois últimos livros de Aquino. A moral e a ética que as move são as do submundo poeirento dos vilarejos do interior do Brasil, locais distantes de qualquer núcleo administrativo, às vezes sem energia elétrica, sem televisão e conseqüentemente sem indústria cultural.

Para narrar o périplo desses expatriados, como já disse, Aquino faz uso, sempre, de períodos curtos e de estocadas fulminantes. A ignorância, o ódio, o sexo, a vingança, o crime, a traição seguida da execução do traidor são uma constante em seus contos. Para verificar isso, basta ler Matadores, conto que depois de sua publicação se transformou num dos melhores longa- metragens brasileiros da última década. Nele, dois matadores de aluguel, Alfredão e um jovem cujo nome não conhecemos (um mestre e um aprendiz, simplificando as coisas), encontram-se num bar de beira de estrada, freqüentado por caminhoneiros e prostitutas bolivianas, paraguaias e nordestinas. Estão aí há dias, a espera de uma suposta vítima que não chega. É justamente essa espera, feita de confidências e lembranças, que aos poucos vai envolvendo e sufocando o leitor, até o arremate inesperado. O estilo de Aquino é simples e direto, sem espaço para subjetivismos. Como numa boa trama detetivesca, ele deita todas as cartas na mesa menos a última, que contém o destino dos protagonistas. Dividido em quatro capítulos, o narrador onisciente de Matadores salta da espera no bar para alguns fatos que aconteceram muito antes, envolvendo outro matador, de nome Múcio, antigo parceiro de Alfredão. Desse ponto o narrador volta para o bar, a fim de encerrar a espera e também a ação que está se dando no momento presente. Em seguida, pula novamente para a história de Múcio, para os instantes finais do relato de seu último dia de vida, encerrando-o de maneira que lance luz em tudo o que veio sendo narrado até aqui.

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João Carrascoza, nascido em 1962, é autor de livros infantis, redator publicitário e professor universitário. A palavra lirismo já foi usada duas ou três vezes neste depoimento — talvez até mesmo de forma leviana, pois é nos contos deste paulista de Cravinhos que ela adquire valor máximo. Sua prosa é intimista, de tons suaves e ternos. Tanto nas narrativas de Hotel solidão quanto nas d’O vaso azul, o que se vê são pessoas comuns, imersas na banalidade do cotidiano, porém flagrados — pessoas e cotidiano — no instante em que começam a sofrer as agitações de um vislumbre epifânico. O primeiro conto que li deste autor, Caçador de vidro, justamente o que abre o livro de estréia de Carrascoza, conseguiu provocar em mim o mesmo sentimento de absoluto, de vida além da vida, que os demais só viriam a reforçar. O conto mostra uma cena pueril: um pai e um filho de sete anos, num voyage a cem quilômetros por hora num dia ensolarado. Seguem, os dois, na direção da cidade dos vidros, e essa designação, “cidade dos vidros”, já é o primeiro passo na direção da revelação mítica e mística, pois com ela Carrascoza transforma um local sem muitos atrativos, onde há algumas fábricas de vidro, numa construção d’As mil e uma noites, pelo menos aos olhos da personagem mirim e do leitor.

João Carrascoza é um lapidador de sentenças, orações, frases, sempre pronto a revelar os vários sentidos de uma palavra ou imagem. Sua escrita é de relojoeiro, de filigranista. É quase sempre do contato entre duas pessoas desconhecidas — num aeroporto, numa viagem marítima, numa avenida sob a chuva — que ele extrai a revelação mística de que falei acima. Tais desconhecidos podem muito bem ser uma mãe e seu filho, como em O vaso azul, ou um marido e sua esposa, como em Iluminados. Este conto particularmente me é muito caro, por ser de uma delicadeza ímpar. Marido e mulher, acomodados no sofá e na rotina de mais um anoitecer, vêem-se subitamente pegos por um blecaute. O que, nas mãos de outro autor, poderia transformar-se numa cena tensa e angustiada, nas de Carrascoza toma o caminho da sensibilidade, dos detalhes íntimos e sutis. Não há gritos, nem revelações hediondas, e muito menos um crime passional. Há a ternura redescoberta, iluminada pela chama das velas, pela luz de pequenos hábitos esquecidos. O casal se ama no escuro, como já não se amava há muito tempo. Em seguida brinca, canta e ri, como as crianças que um dia foram e das quais não se lembravam mais. Isso sem jamais resvalar no piegas ou na retórica de gosto duvidoso.

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A produção do cearense Jorge Pieiro, nascido em 1961, foi aos poucos sendo disseminada pelo próprio autor, quer na forma de livros autoeditados, quer na de boletins eletrônicos distribuídos via Internet a todos os interessados. Professor de literatura, Pieiro tem dois livros de poemas, um de ensaios e dois de contos (de contemas, que é como gosta de denominar suas narrativas curtas): Fragmentos de Panaplo, de 1989, e Caos portátil, de 1999. Na verdade, seus contos têm características híbridas, com elementos trazidos principalmente da poesia. São textos muito curtos, o maior não tendo mais do que duas páginas, de rico conteúdo simbólico e estrutura surrealista. O último de seus livros, Caos portátil, enfeixa trinta e quatro dessas aventuras oníricas e uma novela intitulada Episódios delirantes. Pieiro gosta de trabalhar com ferramentas de corte e solda na microestrutura do discurso. Ou seja, ele, a gramática em uma mão, a tesoura e o tubo de cola noutra, recorta orações e vocábulos a fim de construir sentenças que jamais se completam, cheias de interrupções e atalhos. O resultado é sempre caleidoscópico, com cheiro de escrita automática desautomatizada. Suas tramas parecem se passar em ambientes corriqueiros, na praça e nas residências simples de pequenos municípios do nordeste com aspecto mais de cidades fantasmas. Suas personagens são gente triste, desterrada, com um pé no mundo dos espíritos. Seu narrador, uma entidade alucinada, nem macha nem fêmea, com um olho de água e outro de fogo. Percebe-se que toda a tentativa de esboçar e comentar a prosa deste escritor redunda em definições pouco precisas e completamente subjetivas. Não conheço outra forma de fazer justiça a seu talento. O conto Meu tio e eu, por exemplo. Como sintetizá-lo, sem correr o risco de tornar toda a síntese banal? O tom do sobrinho-narrador é o tom nostálgico e melancólico dos que recordam um passado edênico, muito comum nos autores dados a reconstruir, por meio da prosa, as delícias da própria infância. O tio, em contrapartida, é o arlequim, o bufão, o mago, o endemoninhado dos nossos sonhos e pesadelos. É o porco, ingênuo e carinhoso, que almeja ser Deus. Mais não digo, para não estragar a surpresa da leitura. Em outro conto, O outro totem, um homem com cara triste perambula pelas ruas carregando uma rosa de plástico, a procura de sabe-se lá o quê. A todo momento ele entra e sai de multidões que parecem estar lá apenas para serem invadidas e abandonadas por essa figura de circo dos horrores. A possibilidade de um desfecho amoroso se insinua na metade da narrativa, mas o adocicado final feliz, cheio de risos e de sonhos-de-valsa, jamais foi lugar- comum nos contos de fada de Pieiro.

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Marcelo Mirisola, paulista nascido em 1966, é o mais dionisíaco dos contistas desse grupo. Os dois livros de contos por ele publicados, Fátima fez os pés para mostrar na choperia e O herói devolvido, apresentam ao leitor mais de cinqüenta narrativas em que um único narrador — alter ego de Mirisola — relata as experiências mais escabrosas que a vida em sociedade pode proporcionar. Esse narrador escatológico e debochado faz uso da linguagem chula distorcida pela ironia e pelo fino sarcasmo. Suas histórias, como as dos beatnicks (com quem Mirisola vive sendo comparado) não têm começo nem fim, não passando às vezes de mera colagem de episódios arbitrariamente justapostos. Mas a maneira muito particular de escrever — numa palavra demodê: o estilo — de Mirisola faz com que essas colagens nos pareçam naturais, equilibradas, quando na verdade o desequilíbrio e a desarmonia — estandartes da literatura dionisíaca — são o que de fato sustentam suas narrativas. A escrita deste contista é confessional e caudalosa, nunca em linha reta, sempre em ziguezague. E trata-se de técnica narrativa tão original que, depois de ler três ou quatro contos, poucos serão os que não reconhecerão uma página deste autor, sem a assinatura, quando diante dela. Nos contos de Fátima e do Herói a perversão sexual — a cópula frustrada dos alucinados — é o tema básico em torno do qual giram muitas outras perversões. A prosa é tão contundente e as peripécias narradas são tão terríveis que é difícil não se chocar com o que se está lendo. A existência de Mirisola seria impossível no período da ditadura militar. Ele, assim como os beatnicks, é um típico fruto da democracia, ou melhor: dos excrementos que a democracia fatalmente produz.

O conto mais perturbador de Mirisola é, na minha opinião, Basta um verniz para ser feliz. Sempre é bom lembrar que ele tem um texto sobre um ginecologista que abusa de suas pacientes adolescentes, e outro sobre um débil mental que é usado como objeto sexual dos moradores de uma rua. São páginas sádicas, terríveis. Mas Basta um verniz, além de ser extremamente imoral, traz o narrador mirisoliano no auge de sua forma. E é um conto curto, curtíssimo, de quatro páginas e meia. Nele, a classe média brasileira, suas mazelas e o avançado processo de decomposição em que se encontra são definidos com poucas pinceladas, todas carregadas de humor grotesco. A primeira linha logo nos puxa para o coração da família Duarte, cujo patriarca, Duarte (é claro), executivo bem-sucedido que se gaba de gastar “mil dólares por mês com a educação dos filhos”, está tendo um caso com outro homem. E sua esposa está tendo um caso com outra mulher. E seu filho é bicha e sua filha é uma biscate. A família inteira adora o narrador, que no entanto a odeia, mas se faz de confidente de todos apenas para pegar dinheiro emprestado. E assim vai. Não fica pedra sobre pedra. Uma obra-prima.

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Gostaria de encerrar de maneira fulminante. Ou seja, em silêncio. Assim, o que ficará no ar será apenas o cheiro da pólvora desses jovens prosadores em início de carreira, que, por isso mesmo, não economizam munição. Mas antes do silêncio, um último gesto arrebatado, tão-só para unir as duas pontas que até agora permaneceram soltas: a do dionisíaco e a do apocalíptico. Proponho, em nome de todos os xamãs que já pisaram o solo da terra brasilis, que a partir de agora a primeira categoria seja substituída pela segunda, que a postura apocalíptica deixe de ser antagônica à do otimista e passe a caracterizar o vigoroso passo da literatura brasileira contemporânea. Dessa forma, há boas chances de que cada autor continue dono do seu apocalipse particular. Nomes faltaram. Nomes sempre faltam, daí a impossibilidade da elaboração de um painel coeso e harmônico do novo conto brasileiro. Quemconhece um pouco do que os novos autores estão publicando — e foisuficientemente paciente para me acompanhar até aqui — deve estar experimentando certa frustração. Afinal, onde ficam as Aberrações, de Bernardo Carvalho, os Contos tortos, de Airton Paschoa, O vôo da trapezista, de Amilcar Bettega Barbosa, e as 100 coisas, de Fernando Bonassi? Onde ficam as Anotações durante o incêndio, de Cíntia Moscovich, Aquidauana, de Mauro Pinheiro, Cada um cada um, de Sérgio Fantini, e a Ronda noturna, de Cadão Volpato? Onde ficam O visitante noturno, de Carlos Ribeiro, Um pouco mais de swing, de João Batista Melo, Brincar com armas, de Pedro Salgueiro, e, por que não, Naquela época tínhamos um gato, de Nelson de Oliveira? Tudo o que posso dizer é que a asserção que dá início a este pronunciamento se mostrou, no final, não um recurso retórico e muito menos um blefe a fim de impressionar a audiência, mas a mais pura verdade. Minha apresentação foi apenas parcial, não passando de simples depoimento pessoal sobre os autores que conheço e admiro. Tentar transformar este depoimento num estudo que ambicionasse cartografar o novo conto brasileiro, seria cair numa cilada. Continuo não crendo que tal empreendimento seja passível de ser levado a cabo neste momento. Antes do tão aguardado silêncio, um convite ao apocalipse. Toda crítica é, em suma, um brinquedo de armar. Convido o leitor a invadir livrarias e, conseqüência lógica, a montar sua própria constelação de novos contistas. Ao silêncio, enfim!

P.S.: Quatro dos cinco autores destacados publicaram novos trabalhos depois de 2000: Eles eram muitos cavalos, romance de Luiz Ruffato; Faroestes (contos) e O invasor (novela) de Marçal Aquino; Duas tardes, contos de João Carrascoza, e O azul do filho morto, romance de Marcelo Mirisola.

As principais impressões aqui anotadas foram confirmadas por mais esses livros.

Autores e livros

Ademir Assunção

A máquina peluda, Ateliê Editorial, 1997.

Airton Paschoa

Contos tortos, Nankin Editorial, 1999.

Aleilton Fonseca

Jaú dos bois, Relume Dumará, 1997.

Altair Martins

Como se moesse ferro, VS Editora, 2000.

Bernardo Carvalho

Aberrações, editora Companhia das Letras, 1996.

Carlos Ribeiro

O homem e o labirinto, editora BDA Bahia, 1995.

O visitante noturno, Fundação Cultural da Bahia, 2000.


João Batista Melo

As baleias de Saguenay, editora Rocco, 1997.

Um pouco mais de swing, editora Rocco, 1999.


João Anzanello Carrascoza

Hotel solidão, editora Escritta, 1997.

O vaso azul, editora Ática, 1999.


Jorge Pieiro

Fragmentos de Panaplo, editora Letra e Música, 1989.

Caos portátil, editora Letra e Música, 1999.


José Mucinho

O sucesso não acontece no meu caso, editora ComArte, 2000.


Luiz Ruffato

Histórias de remorsos e rancores, editora Boitempo, 1998.

(os sobreviventes), editora Boitempo, 2000.


Marçal Aquino

As fomes de setembro, editora Estação Liberdade, 1991.

Miss Danúbio, editora Escritta, 1997.

O amor e outros objetos pontiagudos, Geração Editorial, 1999.


Marcelino Freire

Angu de sangue, Ateliê Editorial, 2000.


Marcelo Mirisola

Fátima fez os pés para mostrar na choperia, editora Estação

Liberdade, 1998.

O herói devolvido, Editora 34, 2000.


Michel Laub

Não depois do que aconteceu, Instituto Estadual do Livro, 1998.


Nelson de Oliveira

Os saltitantes seres da lua, editora Relume Dumará, 1997.

Naquela época tínhamos um gato, editora Companhia das Letras, 1998.

Treze, Edições Ciência do Acidente, 1999.

Às moscas, armas!, Coleção Catatau, 2000.


Ronaldo Bressane

Os infernos possíveis, editora ComArte, 2000.


Roney Cytrynowicz

A vida secreta dos relógios, editora Scritta, 1994.


Sérgio Rodrigues

O homem que matou o escritor, editora Objetiva, 2000.