Heiner Muller (1929-1995) |
Ou Descrição de uma imagem.
Uma paisagem entre estepe e
savana, o céu de um azul prussiano, duas nuvens imensas flutuando lá dentro,
como que unidas por esqueletos de arame, em todo caso de estrutura
desconhecida, a maior, da esquerda, poderia ser um animal de borracha de um
parque de diversões que se desgarrou de seu guia, ou um pedaço da Antártida em
seu vôo de regresso, no horizonte uma serra plana, à direita na paisagem uma árvore,
num olhar mais preciso são três árvores altas distintas em forma de cogumelo,
tronco com tronco, talvez de uma raiz, a casa no primeiro plano mais produto
industrial que manual, provavelmente concreto: uma janela, uma porta, o telhado
coberto com a folhagem da árvore em frente que cresce sobre a casa, ela
pertence a uma outra espécie que o grupo de árvores no plano posterior, seu
fruto é aparentemente comestível, ou próprio para envenenar convidados, uma
taça de vidro sobre uma mesa de jardim, ainda meio na sombra da copa da árvore,
oferece seis ou sete exemplares da fruta que se parece com limão, pela posição
da mesa, uma peça grosseira de trabalho manual, as pernas cruzadas são troncos
de bétula nova e tosca, pode-se concluir que o sol, ou seja o que for que lança
luz sobre esse lugar, no momento da imagem está no zênite, pode ser que o SOL
esteja lá sempre e NA ETERNIDADE: que ele se movimente, não se pode provar pela
imagem, as nuvens também, se é que são nuvens, flutuam talvez no lugar, o
esqueleto de arame sua amarração numa tabuleta azul manchada com a tirânica
inscrição CÉU, num galho de árvore um pássaro, a folhagem encobre sua
identidade, pode ser um abutre ou um pavão ou um abutre com cabeça de pavão,
olhar e bico apontados para uma mulher que domina a metade direita da imagem,
sua cabeça divide montanhas, o rosto é suave, muito jovem, o nariz longo
demais, um inchaço na base, talvez de um soco, o olhar no chão, como se não
pudesse esquecer uma imagem e ou não quisesse ver outra, o cabelo comprido de
mechas, loiro ou cinza esbranquiçado, a luz dura não diferencia, a roupa um
casaco de pele esburacado, cortado para ombros mais largos, sobre uma camisa
fina e gasta, provavelmente de linho, da qual em certo ponto da manga direita
desfiada e muito larga um frágil antebraço ergue uma mão à altura do coração,
ou seja do peito esquerdo, um gesto de defesa ou da língua dos surdos-mudos, a
defesa vale um horror conhecido, o golpe empurrão estocada aconteceu, o tiro
disparado, a ferida não sangra mais, a repetição cai no vazio, onde o pavor não
tem lugar, o rosto da mulher torna-se legível, se a segunda suposição for
correta, um rosto de rato, um anjo dos roedores, os maxilares moem cadáveres de
palavras e detritos de fala, a manga esquerda do casaco dependurada em farrapos
como após um acidente ou agressão de algo dilacerante, animal ou máquina,
curioso que o braço não foi ferido, ou as manchas marrom na manga são sangue
coagulado, o gesto da mão direita de dedos longos vale uma dor no ombro
esquerdo, o braço tão solto dependurado na manga, porque ele está quebrado, ou
uma ferida na carne o paralisou, o braço está cortado no pulso pela borda da
imagem, a mão pode ser uma garra, um coto (talvez com sangue ressecado) ou um
gancho, a mulher está até os joelhos sobre o nada, amputada pela borda da
imagem, ou ela cresce do solo como o homem sai da casa e desaparece nele como o
homem na casa, até que a movimentação interminável se instala, rompe o limite,
o vôo, o motor das raízes chovendo pedaços de terra e água subterrânea, visível
a cada olhar, quando o olho VIU TUDO pestanejando se fecha sobre a imagem,
entre árvore e mulher a única e grande janela toda aberta, a cortina esvoaçando
para fora, a tempestade parece sair da casa, nas árvores nenhum sinal de vento,
ou a mulher atrai a tempestade que esperava por ela na cinza da lareira, ou a
chama com sua aparição, o que ou quem foi queimado, uma criança, uma outra
mulher, um amante, ou a cinza é seu próprio verdadeiro resto, o corpo
emprestado da profundeza dos cemitérios, o homem no vão da porta, o pé direito
ainda meio na soleira, o esquerdo já firme sobre o chão marrom manchado de
grama, ressecado por um sol desconhecido, como um punho de caçador na mão
direita do braço esticado segura um pássaro, bem onde se arranca a asa, a mão
esquerda, de dedos tortos e trêmulos muito longos, acaricia a plumagem que o
medo da morte arrufou, o bico do pássaro rasgado num grito silencioso para o
observador, mudo também para o pássaro na árvores, ele não se interessa por
pássaros, o esqueleto de seu congênere na parede interna de veios negros,
visível pelo quadrilátero da janela, que ele não pode ver de seu lugar na
árvore, para ele não teria mensagem, o homem sorri, seu passo é cambaleante, um
passo de dança, não se pode concluir se ele já viu a mulher, talvez seja cego,
seu sorriso a cautela dos cegos, ele vê com os pés, cada pedra que seu pé toca
ri dele, ou o sorriso do assassino que vai ao trabalho, o que vai acontecer na
mesa de pernas cruzadas com a fruteira cheia e o copo de vinho derrubado
quebrado, onde ainda ondeia o resto de um líquido negro, que pingando sobre a
mesa e além da borda se espalha sobre o chão embaixo da mesa e se abre em
poças, a cadeira de espaldar alto à frente tem uma particularidade: suas quatro
pernas estão amarradas a meia altura com um arame, como que a evitar que
desabe, uma segunda cadeira está jogada à direita atrás da árvore, o espaldar
quebrado, a proteção de arame só um Z, não um quadrilátero, talvez uma
tentativa anterior de fixação, que peso quebrou a cadeira, desestabilizou a
outra, um assassinato talvez, ou um ato sexual selvagem, ou os dois em um, o
homem na cadeira, a mulher sobre ele, o membro dele em sua vagina, a mulher
ainda carregada do peso da terra do túmulo de onde saiu para visitar o homem,
da água subterrânea que seu casaco de pele escorre, seu movimento primeiro um
balançar suave, depois um cavalgar impetuoso e progressivo, até que o orgasmo
comprime as costas do homem contra o espaldar da cadeira, que cede estalando,
as costas da mulher contra a quina da mesa derrubando o copo de vinho, a taça
carregada de frutas desliza e, quando a mulher se lança para a frente, seus
braços agarrando o homem, os braços dele sob o casaco de pele eles, ele no
dela, ela cravada no pescoço dele, pára quase na borda outra vez, junto com a
mesa, ou a mulher na cadeira, o homem de pé atrás dela, polegar com polegar as
mãos dele em volta do pescoço dela, como na brincadeira à princípio, só os
dedos médios se tocam, então, quando a mulher se empina contra o espaldar da
cadeira, finca as unhas nos músculos dos braços dele, as veias de seu pescoço e
de sua testa saltam, sua cabeça se enche de sangue tingindo o rosto
vermelhoazul, suas pernas batem convulsivas no tampo de mesa, o copo do vinho
entorna, a taça desliza, o estrangulador fecha o círculo, polegar com polegar,
dedo com dedo, até que as mãos da mulher desabam dos braços dele e o leve
estalar do pomo-de-adão ou da vértebra do pescoço indicam o final do trabalho,
talvez agora, com o peso novamente morto, quando o homem recolher as mãos, o
espaldar da cadeira ceda ou a mulher caia para frente com o rosto vermelhoazul
sobre o copo de vinho, de onde o líquido escuro, vinho ou sangue, procura seu
caminho no chão, ou sombra esfiapada no pescoço da mulher abaixo do queixo
provém de um corte de faca, os fiapos o sangue seco da ferida da largura do
pescoço, as mechas de cabelo à direita do rosto também pretas de sangue
incrustado, rastro do assassino canhoto na soleira da porta, sua faca escreve
da direita para a esquerda, ele vai precisar dela outra vez, ela entufa o forro
de seu casaco, quando o copo partido se forma dos cacos e a mulher se aproxima
da mesa, o pescoço sem cicatriz, ou será a mulher, o anjo sedento, que abre a
mordidas a goela do pássaro e derrama no copo o sangue de sua garganta aberta,
o alimento dos mortos, a faca não é para o pássaro, o rosto do homem tem a cor
do chão até a altura dos olhos, testa e mão visíveis, a outra esconde o cabo na
plumagem, são brancas como papel, no trabalho ao ar livre ele parece usar
luvas, por que não no momento da imagem, e algo como um chapéu contra o astro
quente, que ilumina a paisagem e desbota suas cores, qual será seu trabalho,
abstraindo o homicídio talvez diário da mulher talvez diariamente ressurreta, nessa
paisagem animais só surgem como nuvens, não há mão que os agarre, o pássaro na
árvore é a última reserva, um chamariz o captura, inútil arrancar a grama, o
SOL, talvez uma multiplicidade de SÓIS a queima, os frutos da árvore onde está
o pássaro são rapidamente colhidos, teceram os dedos trêmulos do estrangulador
a rede de aço em torno da cordilheira plana, de onde apenas um cume de montanha
branco como papel ainda sobressai desprotegido, proteção contra o
desmoronamento das pedras que se soltam do interior da terra nas caminhadas dos
mortos, que são as pulsações furtivas do planeta a que a imagem se refere,
proteção com alguma perspectiva talvez com o passar do tempo, quando o
crescimento dos cemitérios, com o pequeno peso do provável assassino no umbral alcança
seu limite, do pássaro na árvore rapidamente digerido, para seu esqueleto a
parede tem lugar, ou o movimento dá a volta, quando todos estiverem mortos, o
movimento dos túmulos na fúria da ressurreição, que expulsa as cobras da
montanha, será a mulher de olhar furtivo e boca de ventosa uma MATA HARI do
mundo subterrâneo, espiã que sonda as terras onde acontecerá a grande manobra,
que cobre de carne os ossos famintos, a carne com pele, atravessada por veias
que bebem o sangue do chão, as vísceras regressam do nada, ou o anjo está oco
debaixo do vestido, porque a reserva de carne subtraída enterrada no chão não
dá mais corpos, um DEDO PERVERSO que mortos seguram ao vento contra a polícia
do céu, antecessora e NOIVA DO VENTO, que estira o vento onde habitam os
inimigos naturais da ressurreição da carne, ele sopra qual tempestade na
armadilha, a seta da cortina aponta para mulher, o assassino talvez também só
um morto a trabalho, o extermínio dos pássaros sua missão (secreta), o passo de
dança indolente anuncia o fim próximo do trabalho, talvez a mulher já esteja em
seu caminho de regresso ao chão, grávida da tempestade, do sêmen do
renascimento da explosão da ossada, ossos e estilhaços e medula, a provisão ao
vento marca a distância dos pedaços, dos quais talvez, após a migração do
fôlego o terremoto os explode através da pele do planeta, o TODO se reúne, a
fecundação do astro pelos seus mortos, o primeiro sinal as nuvens com o
esqueleto de arame, que na verdade é feito de nervos, que cobrem os ossos, ou de
teias de aranha de medula óssea, como a trança sem raízes visíveis que se
arrasta para cima do bangalô e já ocupa todo o seu interior até o teto, ou o
emaranhado de arame das cadeiras, ou a rede que prega a cordilheira ao solo, ou
tudo é diferente, a rede de aço o humor de um lápis descuidado, que nega a
plástica das montanhas com um sombreado mal executado, talvez a arbitrariedade
da composição siga um plano, a árvore sobre uma bandeja, as raízes cortadas, as
árvores de outro tipo ao fundo são cogumelos de caule singularmente longos,
vegetal de zona climática que não conhece árvores, como o bloco de cimento
entrou na paisagem, nenhum vestígio de transporte ou veículo, EU FALEI PARA
VOCÊ NÃO VOLTAR MORTO É MORTO, nenhum vestígio de arrasto marcado no solo, caído
do CÉU, ou baixado com garra mecânica do ar respirável só pelos mortos e que é
movida a partir de um ponto fixo no CÈU chamado além, é a cordilheira uma peça
de museu, empréstimo de uma sala de exposições subterrânea, onde as montanhas
são guardadas, porque em seu lugar natural impedem o vôo rasante dos anjos, a
imagem um arranjo experimental, a rudeza do esboço uma expressão do desprezo
pelas cobaias homem, pássaro, mulher, a bomba sanguínea do homicídio diário,
homem contra pássaro e mulher, mulher contra pássaro e homem, pássaro contra
mulher e homem, abastece o planeta com combustível, sangue a tinta, que
descreve em cores sua vida de papel, seu céu também ameaçado de anemia pela
ressurreição da carne, procurado: o vão no escoamento, o outro no retorno do
mesmo, o gaguejar no texto sem fala, o buraco na eternidade, o ERRO talvez
redentor: olhar distraído do assassino quando examina o pescoço da vítima sobre
a cadeira coma as mãos, com o gume da faca, sobre o pássaro na árvore, no vazio
da paisagem, hesitação perante o corte, o jato de sangue fecha os olhos, riso
da mulher, que por um instante afrouxa o estrangulamento, faz tremer a mão com
a faca, vôo mergulho do pássaro, engodado pelo brilho do gume, pouso sobre o
crânio do homem, duas bicadas à direita e à esquerda, vertigem e urro dos
cegos, sangue chispando no torvelinho da tempestade que procura a mulher, medo
que o erro aconteça num piscar de olhos, a brecha de vista que se abre no tempo
entre um olhar e outro, a esperança mora no gume de uma faca que com atenção
crescente, logo fadiga, rota mais rápido, incertezas relampejantes na certeza
do horror: O HOMICÍDIO é uma troca de sexos, ESTRANHO NO PRÓPRIO CORPO, a faca
é a ferida, a nuca o machado, pertence ao plano a fiscalização falha, em que aparelho
está presa a lente que suga as cores do olhar, em que órbita ocular está
estirada a retina, quem OU O QUÊ pergunta pela imagem, MORAR NO ESPELHO, o
homem com o passo de dança EU, meu túmulo seu rosto, EU a mulher com a ferida
no pescoço, à direita e à esquerda nas mãos o pássaro partido, sangue na boca,
EU O PÁSSARO, aquele que com a escrita de seu bico mostra ao assassino o
caminho da noite, EU a tempestade gelada.
DESCRIÇÃO
DE IMAGEM pode ser lida como um retoque em ALCESTE, que cita a peça nô KUMASAKA,
o 11. canto da ODISSÉIA, OS PÁSSAROS de Hitchcock e A TEMPESTADE de
Shakespeare. O Texto descreve uma paisagem vista de além-túmulo. A ação é
livre, já que as seqüências são passado, explosão de uma lembrança numa
estrutura dramática morta.
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