Preciosidades

sábado, 28 de julho de 2012

Descrição de Imagem. Heiner Muller

Heiner Muller (1929-1995)
Ou Descrição de uma imagem.

Uma paisagem entre estepe e savana, o céu de um azul prussiano, duas nuvens imensas flutuando lá dentro, como que unidas por esqueletos de arame, em todo caso de estrutura desconhecida, a maior, da esquerda, poderia ser um animal de borracha de um parque de diversões que se desgarrou de seu guia, ou um pedaço da Antártida em seu vôo de regresso, no horizonte uma serra plana, à direita na paisagem uma árvore, num olhar mais preciso são três árvores altas distintas em forma de cogumelo, tronco com tronco, talvez de uma raiz, a casa no primeiro plano mais produto industrial que manual, provavelmente concreto: uma janela, uma porta, o telhado coberto com a folhagem da árvore em frente que cresce sobre a casa, ela pertence a uma outra espécie que o grupo de árvores no plano posterior, seu fruto é aparentemente comestível, ou próprio para envenenar convidados, uma taça de vidro sobre uma mesa de jardim, ainda meio na sombra da copa da árvore, oferece seis ou sete exemplares da fruta que se parece com limão, pela posição da mesa, uma peça grosseira de trabalho manual, as pernas cruzadas são troncos de bétula nova e tosca, pode-se concluir que o sol, ou seja o que for que lança luz sobre esse lugar, no momento da imagem está no zênite, pode ser que o SOL esteja lá sempre e NA ETERNIDADE: que ele se movimente, não se pode provar pela imagem, as nuvens também, se é que são nuvens, flutuam talvez no lugar, o esqueleto de arame sua amarração numa tabuleta azul manchada com a tirânica inscrição CÉU, num galho de árvore um pássaro, a folhagem encobre sua identidade, pode ser um abutre ou um pavão ou um abutre com cabeça de pavão, olhar e bico apontados para uma mulher que domina a metade direita da imagem, sua cabeça divide montanhas, o rosto é suave, muito jovem, o nariz longo demais, um inchaço na base, talvez de um soco, o olhar no chão, como se não pudesse esquecer uma imagem e ou não quisesse ver outra, o cabelo comprido de mechas, loiro ou cinza esbranquiçado, a luz dura não diferencia, a roupa um casaco de pele esburacado, cortado para ombros mais largos, sobre uma camisa fina e gasta, provavelmente de linho, da qual em certo ponto da manga direita desfiada e muito larga um frágil antebraço ergue uma mão à altura do coração, ou seja do peito esquerdo, um gesto de defesa ou da língua dos surdos-mudos, a defesa vale um horror conhecido, o golpe empurrão estocada aconteceu, o tiro disparado, a ferida não sangra mais, a repetição cai no vazio, onde o pavor não tem lugar, o rosto da mulher torna-se legível, se a segunda suposição for correta, um rosto de rato, um anjo dos roedores, os maxilares moem cadáveres de palavras e detritos de fala, a manga esquerda do casaco dependurada em farrapos como após um acidente ou agressão de algo dilacerante, animal ou máquina, curioso que o braço não foi ferido, ou as manchas marrom na manga são sangue coagulado, o gesto da mão direita de dedos longos vale uma dor no ombro esquerdo, o braço tão solto dependurado na manga, porque ele está quebrado, ou uma ferida na carne o paralisou, o braço está cortado no pulso pela borda da imagem, a mão pode ser uma garra, um coto (talvez com sangue ressecado) ou um gancho, a mulher está até os joelhos sobre o nada, amputada pela borda da imagem, ou ela cresce do solo como o homem sai da casa e desaparece nele como o homem na casa, até que a movimentação interminável se instala, rompe o limite, o vôo, o motor das raízes chovendo pedaços de terra e água subterrânea, visível a cada olhar, quando o olho VIU TUDO pestanejando se fecha sobre a imagem, entre árvore e mulher a única e grande janela toda aberta, a cortina esvoaçando para fora, a tempestade parece sair da casa, nas árvores nenhum sinal de vento, ou a mulher atrai a tempestade que esperava por ela na cinza da lareira, ou a chama com sua aparição, o que ou quem foi queimado, uma criança, uma outra mulher, um amante, ou a cinza é seu próprio verdadeiro resto, o corpo emprestado da profundeza dos cemitérios, o homem no vão da porta, o pé direito ainda meio na soleira, o esquerdo já firme sobre o chão marrom manchado de grama, ressecado por um sol desconhecido, como um punho de caçador na mão direita do braço esticado segura um pássaro, bem onde se arranca a asa, a mão esquerda, de dedos tortos e trêmulos muito longos, acaricia a plumagem que o medo da morte arrufou, o bico do pássaro rasgado num grito silencioso para o observador, mudo também para o pássaro na árvores, ele não se interessa por pássaros, o esqueleto de seu congênere na parede interna de veios negros, visível pelo quadrilátero da janela, que ele não pode ver de seu lugar na árvore, para ele não teria mensagem, o homem sorri, seu passo é cambaleante, um passo de dança, não se pode concluir se ele já viu a mulher, talvez seja cego, seu sorriso a cautela dos cegos, ele vê com os pés, cada pedra que seu pé toca ri dele, ou o sorriso do assassino que vai ao trabalho, o que vai acontecer na mesa de pernas cruzadas com a fruteira cheia e o copo de vinho derrubado quebrado, onde ainda ondeia o resto de um líquido negro, que pingando sobre a mesa e além da borda se espalha sobre o chão embaixo da mesa e se abre em poças, a cadeira de espaldar alto à frente tem uma particularidade: suas quatro pernas estão amarradas a meia altura com um arame, como que a evitar que desabe, uma segunda cadeira está jogada à direita atrás da árvore, o espaldar quebrado, a proteção de arame só um Z, não um quadrilátero, talvez uma tentativa anterior de fixação, que peso quebrou a cadeira, desestabilizou a outra, um assassinato talvez, ou um ato sexual selvagem, ou os dois em um, o homem na cadeira, a mulher sobre ele, o membro dele em sua vagina, a mulher ainda carregada do peso da terra do túmulo de onde saiu para visitar o homem, da água subterrânea que seu casaco de pele escorre, seu movimento primeiro um balançar suave, depois um cavalgar impetuoso e progressivo, até que o orgasmo comprime as costas do homem contra o espaldar da cadeira, que cede estalando, as costas da mulher contra a quina da mesa derrubando o copo de vinho, a taça carregada de frutas desliza e, quando a mulher se lança para a frente, seus braços agarrando o homem, os braços dele sob o casaco de pele eles, ele no dela, ela cravada no pescoço dele, pára quase na borda outra vez, junto com a mesa, ou a mulher na cadeira, o homem de pé atrás dela, polegar com polegar as mãos dele em volta do pescoço dela, como na brincadeira à princípio, só os dedos médios se tocam, então, quando a mulher se empina contra o espaldar da cadeira, finca as unhas nos músculos dos braços dele, as veias de seu pescoço e de sua testa saltam, sua cabeça se enche de sangue tingindo o rosto vermelhoazul, suas pernas batem convulsivas no tampo de mesa, o copo do vinho entorna, a taça desliza, o estrangulador fecha o círculo, polegar com polegar, dedo com dedo, até que as mãos da mulher desabam dos braços dele e o leve estalar do pomo-de-adão ou da vértebra do pescoço indicam o final do trabalho, talvez agora, com o peso novamente morto, quando o homem recolher as mãos, o espaldar da cadeira ceda ou a mulher caia para frente com o rosto vermelhoazul sobre o copo de vinho, de onde o líquido escuro, vinho ou sangue, procura seu caminho no chão, ou sombra esfiapada no pescoço da mulher abaixo do queixo provém de um corte de faca, os fiapos o sangue seco da ferida da largura do pescoço, as mechas de cabelo à direita do rosto também pretas de sangue incrustado, rastro do assassino canhoto na soleira da porta, sua faca escreve da direita para a esquerda, ele vai precisar dela outra vez, ela entufa o forro de seu casaco, quando o copo partido se forma dos cacos e a mulher se aproxima da mesa, o pescoço sem cicatriz, ou será a mulher, o anjo sedento, que abre a mordidas a goela do pássaro e derrama no copo o sangue de sua garganta aberta, o alimento dos mortos, a faca não é para o pássaro, o rosto do homem tem a cor do chão até a altura dos olhos, testa e mão visíveis, a outra esconde o cabo na plumagem, são brancas como papel, no trabalho ao ar livre ele parece usar luvas, por que não no momento da imagem, e algo como um chapéu contra o astro quente, que ilumina a paisagem e desbota suas cores, qual será seu trabalho, abstraindo o homicídio talvez diário da mulher talvez diariamente ressurreta, nessa paisagem animais só surgem como nuvens, não há mão que os agarre, o pássaro na árvore é a última reserva, um chamariz o captura, inútil arrancar a grama, o SOL, talvez uma multiplicidade de SÓIS a queima, os frutos da árvore onde está o pássaro são rapidamente colhidos, teceram os dedos trêmulos do estrangulador a rede de aço em torno da cordilheira plana, de onde apenas um cume de montanha branco como papel ainda sobressai desprotegido, proteção contra o desmoronamento das pedras que se soltam do interior da terra nas caminhadas dos mortos, que são as pulsações furtivas do planeta a que a imagem se refere, proteção com alguma perspectiva talvez com o passar do tempo, quando o crescimento dos cemitérios, com o pequeno peso do provável assassino no umbral alcança seu limite, do pássaro na árvore rapidamente digerido, para seu esqueleto a parede tem lugar, ou o movimento dá a volta, quando todos estiverem mortos, o movimento dos túmulos na fúria da ressurreição, que expulsa as cobras da montanha, será a mulher de olhar furtivo e boca de ventosa uma MATA HARI do mundo subterrâneo, espiã que sonda as terras onde acontecerá a grande manobra, que cobre de carne os ossos famintos, a carne com pele, atravessada por veias que bebem o sangue do chão, as vísceras regressam do nada, ou o anjo está oco debaixo do vestido, porque a reserva de carne subtraída enterrada no chão não dá mais corpos, um DEDO PERVERSO que mortos seguram ao vento contra a polícia do céu, antecessora e NOIVA DO VENTO, que estira o vento onde habitam os inimigos naturais da ressurreição da carne, ele sopra qual tempestade na armadilha, a seta da cortina aponta para mulher, o assassino talvez também só um morto a trabalho, o extermínio dos pássaros sua missão (secreta), o passo de dança indolente anuncia o fim próximo do trabalho, talvez a mulher já esteja em seu caminho de regresso ao chão, grávida da tempestade, do sêmen do renascimento da explosão da ossada, ossos e estilhaços e medula, a provisão ao vento marca a distância dos pedaços, dos quais talvez, após a migração do fôlego o terremoto os explode através da pele do planeta, o TODO se reúne, a fecundação do astro pelos seus mortos, o primeiro sinal as nuvens com o esqueleto de arame, que na verdade é feito de nervos, que cobrem os ossos, ou de teias de aranha de medula óssea, como a trança sem raízes visíveis que se arrasta para cima do bangalô e já ocupa todo o seu interior até o teto, ou o emaranhado de arame das cadeiras, ou a rede que prega a cordilheira ao solo, ou tudo é diferente, a rede de aço o humor de um lápis descuidado, que nega a plástica das montanhas com um sombreado mal executado, talvez a arbitrariedade da composição siga um plano, a árvore sobre uma bandeja, as raízes cortadas, as árvores de outro tipo ao fundo são cogumelos de caule singularmente longos, vegetal de zona climática que não conhece árvores, como o bloco de cimento entrou na paisagem, nenhum vestígio de transporte ou veículo, EU FALEI PARA VOCÊ NÃO VOLTAR MORTO É MORTO, nenhum vestígio de arrasto marcado no solo, caído do CÉU, ou baixado com garra mecânica do ar respirável só pelos mortos e que é movida a partir de um ponto fixo no CÈU chamado além, é a cordilheira uma peça de museu, empréstimo de uma sala de exposições subterrânea, onde as montanhas são guardadas, porque em seu lugar natural impedem o vôo rasante dos anjos, a imagem um arranjo experimental, a rudeza do esboço uma expressão do desprezo pelas cobaias homem, pássaro, mulher, a bomba sanguínea do homicídio diário, homem contra pássaro e mulher, mulher contra pássaro e homem, pássaro contra mulher e homem, abastece o planeta com combustível, sangue a tinta, que descreve em cores sua vida de papel, seu céu também ameaçado de anemia pela ressurreição da carne, procurado: o vão no escoamento, o outro no retorno do mesmo, o gaguejar no texto sem fala, o buraco na eternidade, o ERRO talvez redentor: olhar distraído do assassino quando examina o pescoço da vítima sobre a cadeira coma as mãos, com o gume da faca, sobre o pássaro na árvore, no vazio da paisagem, hesitação perante o corte, o jato de sangue fecha os olhos, riso da mulher, que por um instante afrouxa o estrangulamento, faz tremer a mão com a faca, vôo mergulho do pássaro, engodado pelo brilho do gume, pouso sobre o crânio do homem, duas bicadas à direita e à esquerda, vertigem e urro dos cegos, sangue chispando no torvelinho da tempestade que procura a mulher, medo que o erro aconteça num piscar de olhos, a brecha de vista que se abre no tempo entre um olhar e outro, a esperança mora no gume de uma faca que com atenção crescente, logo fadiga, rota mais rápido, incertezas relampejantes na certeza do horror: O HOMICÍDIO é uma troca de sexos, ESTRANHO NO PRÓPRIO CORPO, a faca é a ferida, a nuca o machado, pertence ao plano a fiscalização falha, em que aparelho está presa a lente que suga as cores do olhar, em que órbita ocular está estirada a retina, quem OU O QUÊ pergunta pela imagem, MORAR NO ESPELHO, o homem com o passo de dança EU, meu túmulo seu rosto, EU a mulher com a ferida no pescoço, à direita e à esquerda nas mãos o pássaro partido, sangue na boca, EU O PÁSSARO, aquele que com a escrita de seu bico mostra ao assassino o caminho da noite, EU a tempestade gelada.

DESCRIÇÃO DE IMAGEM pode ser lida como um retoque em ALCESTE, que cita a peça nô KUMASAKA, o 11. canto da ODISSÉIA, OS PÁSSAROS de Hitchcock e A TEMPESTADE de Shakespeare. O Texto descreve uma paisagem vista de além-túmulo. A ação é livre, já que as seqüências são passado, explosão de uma lembrança numa estrutura dramática morta.


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