No meio do testemunho a máquina quebra. Todas as vezes bem no meio do testemunho a máquina quebra, se espatifa inteira. E, depois disso, remontar a máquina acarreta ao menos uma ou duas mortes. É sempre assim. Isto porque o procedimento, alguém disse gritando antes de fugir de vez do mundo, correndo e babando uma gosma roxa, tem a ver com o fato de que esta é uma daquelas que foram chamadas de máquinas de assédio, e como tal elas têm a ver com guerra, desejo e morte. Estas máquinas eram destruídas pelo exército derrotado em pleno campo de batalha para que nenhum inimigo ousasse lhes copiar o modelo, a feitura, o embate, o material, os distúrbios. Muitas vezes destruídas com fogo, causavam grandes fogueiras de desespero na alma de quem punha nelas a primeira faísca.
Estes exemplares que são usados aqui, no meio desta sala, para roubar a alma dos passantes, capturar as digitais de seus pés e imprimir em seus próprios corpos os seus testemunhos mais íntimos, foram trazidos num dia normal de sol de verão, um dia de calor, dentro de um avião clandestino que decolou na primeira sombra da manhã de uma pista escondida próxima a uma região do Mar Tirreno. Um artista-engenheiro, encantado com as partes espalhadas das geringonças, escreveu à mão numa folha amarela, antes de ser tragado e morto por uma das máquinas, que elas foram encontradas no subterrâneo de uma das torres de San Gimigniano, claudicantes, retorcidas, tristes e sem emitir som algum. Disse que foi ele quem teve que limpar tudo, organizar cada pedaço, refazer os buracos dos parafusos, das cordas e de todas as frinchas de moer as resistências da dor. Disse ainda que antes de tentar reconstruí-las, porém, se deu conta que precisava recuperar o espaço de incisão e ter alguma certeza para onde levaria cada uma delas, porque, sem mais nem menos, elas ocupam um vão de quase cento e quarenta ou cento e cinqüenta metros quadrados. No papel amarelo do artista-engenheiro, a uma certa altura, a letra falha e some, e não há como descobrir ou saber mais nada. Nem das máquinas, nem dele. Mesmo de sua morte, até este momento, o que se tem é uma simples suspeita, uma suposição.
Depois de montadas, todas, detalhadamente, uma delas, a que funcionava melhor, serve agora, rotineiramente, como engenhoca comprobatória de tortura para o testemunho, mas sempre quebra. Todas as vezes bem no meio do testemunho ela quebra, se espatifa inteira e obriga a sua reconstrução. Aqueles que praticam o testemunho, ao verem o desmantelo da máquina, se envergonham das próprias sobrevivências, se calam, desesperam e fogem. Fogem com tal desespero na alma que não há como amainá-los. É um desespero tal qual sem fim, como o dos que eram obrigados a queimar as máquinas depois do combate e carregavam um incêndio no corpo até o termo de suas vidas precárias.
E a máquina mata, sem dó, todos que desafiam remontá-la. E não há outra opção senão tentar o remonte da enjambrada, porque ela provoca afetos destemidos nas zonas de lama preta e à altura do coração naqueles que lançam olhares distraídos, tanto que logo depois caem sofrendo suor e jurando amor-mais-que-perfeito. Tomados de amor, não há como ousar, nunca, nenhum outro movimento, que não o de reconstruí-la. E por isso, morrem, morrem sem ar com um sorriso delicadamente sufocado de canto de boca, agarrados no disco girante ou na corrente de pesar. (Manoel Ricardo de Lima),
Manoel Ricardo de Lima (Parnaíba-PI, 1970). Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC, onde também faz doutorado em Teoria da Literatura, Textualidades Contemporâneas, a partir de Joaquim Cardozo e Ruy Belo. Publicou Embrulho (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000); Falas inacabadas — objetos e um poema, com a artista visual Elida Tessler (Rio Grande do Sul: Tomo Editorial, 2000); Entre percurso e vanguarda — alguma poesia de P. Leminski (São Paulo: Annablume, 2002), As mãos (Rio de Janeiro: 7Letras, 2003) e Outra manhã, uma plaqueta, com Anibal Cristobo e Eduardo Frota (Ceará: Dragão do Mar, 2006). Do comitê editorial da revista de poesia Inimigo Rumor (Cosac Naify/7Letras) e da revista Ficções (7Letras). É colaborador como articulista de alguns jornais e revistas, e mantém uma coluna de crítica no jornal O Povo (Fortaleza-CE) desde 1997. Mais sobre Manoel Ricardo de Lima em Mafuá — Revista de Literatura, La Insignia, O Povo.
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