Preciosidades

sábado, 14 de agosto de 2010

Bilhete premiado. Paulo César Ramos de Magalhães


Heloísa sempre foi uma pessoa muito simpática e disposta a ajudar quem necessitava. Mas seu sorriso tinha algo de inacabado, seu olhar não tinha o brilho da felicidade. A frustração de não conseguir ter um filho deixava um vazio em suas realizações. O marido a consolava, na dificuldade de engravidar, dizendo que não se preocupasse com isso, já que não fazia questão de ter filhos. Ele até via sua relação reforçada com a ausência de crianças em casa. Há algum tempo, um enorme desejo de adotar uma criança tomava conta de Heloísa, o que desagradava o marido Orlando.

César curtia música e, num momento de relaxamento, ao prestar atenção na letra de uma delas, relembrou o passado. Decidiu que entraria em contato com alguns velhos amigos para promover um encontro. Mas a tarefa não era fácil. Ao investir todas as suas expectativas em sua carreira, havia se afastado de todos, e, ao criar uma família, deixou de lado aquela vida de farra com os amigos. Após longa busca, conseguiu encontrar um velho amigo. Inicialmente decidiu combinar um chopinho. Assim fizeram no passar das horas: memórias os tornavam mais jovens, mais felizes. Ficou combinado então um encontro entre famílias.

Após muitos aborrecimentos, Heloísa decidiu não insistir mais na adoção, pelo menos naquele momento. Ela não quis tornar sua relação com o marido mais difícil e desgastada. O trabalho voluntário em uma instituição de caridade estava lhe tornando mais sensível e crítica aos problemas sociais. Um dia estava passeando com uma amiga, após o almoço, e compraram bilhetes de loteria, após a insistência de um vendedor. Imediatamente, ambas começaram a planejar o que fariam com um prêmio milionário como aquele. Entre brincadeiras, Heloísa disse que aquele dinheiro convenceria o marido quanto a aceitar a adoção de uma criança, pois não escutaria reclamações das dificuldades financeiras em se criar um filho. Ao chegar em casa, fez o mesmo comentário com o marido, que retrucou dizendo que, ainda com muito dinheiro, somente aceitaria um filho legítimo. A tristeza não abandonava seu olhar, alimentada pelas duras palavras do marido.

Edna, a caridosa mulher do engenheiro bem sucedido, não fez economias: decidiu um belo almoço e uma tarde agradável, em seu sítio, para receber os convidados. César aguardava sua visita rasgando elogios e enaltecendo as qualidades do amigo, causando expectativa em sua família. As visitas chegaram e ficaram encantadas com a beleza do lugar. O velho amigo de César viu beleza maior ao olhar para Edna, que passava a mão pelos longos cabelos A sensualidade dela desorientou suas ações. O amigo tentava buscar assunto para desviar a atenção, mas seu corpo não obedecia. Os gestos e olhares educados da esposa do amigo lhe deixavam instigado, provocando desejos mais absurdos. Daquele primeiro encontro vieram outros. O perigo se aproximava.

A amiga de Heloísa lhe telefonou falando que quase acertara o número premiado da loteria e perguntou se já tivera conferido seu bilhete. Respondeu que seu bilhete não estava premiado, mesmo sem ter conferido. A conversa não lhe animou muito. Ao receber resultado de exames médicos, deixou de lado seus planos. Ela não era estéril, como imaginava, mas apresentava um grave problema de saúde. A relação de amizade entre seu amigo e Edna provocava suspeitas em César, que passou a observar mais e seguir sua decente esposa. Então, a beleza da dedicada Edna virou notícia: foi manchete de TV e de jornais, com seu belo corpo nu, em pose sensual, desfalecido. Seu velho amigo estava internado em um hospital, agora fora de perigo.

Heloísa foi ao quintal de sua casa, herdada de seus pais, e procurou uma inscrição feita em sua infância no cimento fresco de uma das bordas do jardim: “Minha família feliz”. A beleza da frase fez com que seu pai jamais apagasse o que estava escrito. Mesmo tendo a mãe e a avó mortas pelo câncer, nunca havia se preocupado com prevenção. Dirigiu-se à instituição que cuidava de crianças carentes e abandonadas, da qual contribuía com trabalho voluntário, e doou o bilhete premiado, antes que seu insensato marido recebesse alta do hospital.

A solidariedade é uma das atitudes mais nobres e desprovidas de preconceitos que uma pessoa de bem pode ter. 

Fonte: Cadernos de autoria do Sesc - São Miguel do Oeste.

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