Preciosidades

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Dispensando adubos e (mesmo) regas. Rosário Fusco


O Mudo comprou Sicrana (era uma Sexta-Feira da Paixão) de um ex-piloto da marinha mercante (demitido a bem do serviço públíco) que apareceu no cais dizendo ter-se enviuvado na véspera e, por isso, barganhava a filha por um transporte de terceira em qualquer barco que tocasse o Norte, depois do paralelo tal: precisou, na mímica que o outro pareceu entender pelo balanço da cabeça e grunhidos. Tanto que, acenando ao companheiro que o interpretava melhor, propôs-lhe uma coleta entre os estivadores (na maioria, nordestinos também) para somar duas passagens de uma vez.
Não houve quem se negasse à contribuição, mas houve o pior: a menina não queria ir, gritando que só embarcaria morta, transformada em bife. Teria passado uns nove anos de fome, ossos à mostra, piolhos, placas gomosas de sífilis, feiúra e revolta.
Agora, ao começar a encorpar-se precocemente, alardeava certo desembaraço de mulher feita. Mais tarde, para justificar-se ou o que fosse, ela mesma contaria que o pai, desempregado havia anos, forçava-a, a poder de porradas, a esmolar pelas ruas a garrafa nossa de cada dia, enquanto a mãe purgava todas as dores do mundo num catre da Santa Casa de Misericórdia.
Concluída a operação, o Mudo teve a idéia de mandar deter os dois — pai e filha — no único beliche disponível do falanstério que até hoje habita. Mandou comida, mandou bebida, mandou um vigia de porta, mas não mandou a passagem do navio que deveria sair no dia seguinte. Liberado de madrugada, foi-se o imigrante e ficou a imigrada: com roupas e sapatos novos, inúteis revistas de quadrinhos (não sabia ler) e o visível alvoroço do passarinho que escapa da arapuca.
Quem tomaria conta da garota que os embarcadiços não queriam acolher, dada a difícil vida que levavam e a instabilidade das ligações que mantinham: uma companheira hoje, outra amanhã, e a renda subordinada aos caprichos das sereias, geladas amantes de Netuno e parteiras das desovas?
Sendo o único livre dos endereços de cama, mesa, lavadeira e mulher, amolecido, o Mudo decidiu-se a ser pai aos quarenta e cinco anos, na peça já alugada e paga. Com isso, e por isso, perdeu viagens sucessivas, passando a dedicar-se ao contrabando de drogas, bebidas, baralhos de fotografias obscenas e ervas para sonhar: acordado e colorido.
Experimentou empreitar uma fêmea, coisa que Sicrana, de saída, recusou, preferindo tomar o comando da “casa” a submeter-se à autoridade e berros de uma estrangeira, como a que agüentou durante quinze dias. - Não quero mãe, nem madrasta: quero eu.
Outro problema: a idade da enjeitada, a qualidade dos hóspedes da cabeça de porco e a impossibilidade de vigiá-la à distância. Então, pediu a alguém que lhe escrevesse uma carta ao seu consul — para quem já vinha colocando, há tempos, moambas oficiais — e, acomodando a protegida na casa de sua excelência, retornou à sua vocação e mister: pescar. Pescar tudo, inclusive as desventuras alheias...
No palacete do ilustre, Sicrana aprendeu a ler, escrever, tocar violão, pensar, falar, ver e calar. Também aprendeu maneiras, costura, bordado e outras coisas que não disse. De qualquer jeito considerou que, aos dezoito, já sabendo defender-se, estava na obrigação e hora de ajudar o velho: segundo ou terceiro pai não importva, uma vez que o tratamento recebido dos gringos não poderia ser melhor e, o do primeiro, não poderia ter sido pior.
Logo se readaptando ao estilo do porto - adquirido em menos de ano e meio - encheu o quarto do capitão e a zona marítima de alegria, com seus ademanes e graças naturais. Fechando os ouvidos às cantadas, ou se esquivando às bolinas de velhos e moços, de recusa em recusa às propostas para dormir (que os previdentes interessados só faziam na ausência paterna), acabou por conquistar a reputação de invulnerável, rara no meio, onde depressa arranjou amigos, fregueses para o que vendia, conselheiros desinteressados e gratuitos defensores.
Viajando, o pescador deixava quitado o necessário. Regressando, vinha carregado de tartarugas e lagostas, quer dizer, dinheiro: safra de divertimentos em perspectiva.
Agora beirava os vinte e cinco. Mas a revelação já havia acontecido no festivo dia de seus vinte anos. Beberam o que puderam, comeram o que quiseram com amigos e aderentes anônimos: tudo por ali mesmo.
Às oito da manhã do dia seguinte (recolheram-se, na véspera, quase madrugada), o Mudo, antes de partir (sob a ação ou pessoal desculpa do efeito do álcool) começou a apalpá-la docemente... docemente... e falou: usando a língua que ela desconhecia, mas compreendeu. Fingindo dormir, ajeitou-se, inventou posições e foi deixando, deixando (por delicadeza, espanto, ignorância?), deixando..., até o desfalecimento inaugural, regado de lágrimas: adiante-se a favor da jovem.
Daí por diante, já viciada no religioso rito, passou a rezar para que as longas pescarias que o afastavam dela, de fracasso em fracasso levassem o pai a trocar o mar pela terra, onde certas espécies de rosas entumescem, desabrocham, sangram e murcham pra renascer mais belas todo mês: dispensando adubos e (mesmo) regas. (in “A.S.A. Associação dos Solitários Anônimos” – p. 41/44)
Rosário Fusco e a esposa

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