Preciosidades

quarta-feira, 30 de março de 2011

Uma forma de oração. Ronaldo Bressane

       “Deus dai-me o ventre de Maria e as coxas de Pietra nesta hora inglória Senhor dai-me competência para recortar com meus dedos trêmulos a pele de Ellen e colar com meus olhos turvos os olhos de Jenifer e multiplicar os lábios de Ira para copiar de meu pranto a dor no riso de Juliana dai-me Deus todas as teclas para clipar de Diana a nuca e escanear de Luna a vulva e amamentar os mamilos magenta cem por cento de Luana para deletar os defeitos nos pés de Claudia neste estéril Éden ó Onipotente dai-me forças para arrancar de minhas dores lombares o traço que rotunde a bunda plana de Lara para que seja em todas as camadas sangue do meu sangue a espessura sem gordura da panturrilha de Priscilla govenai minhas mãos ao retocar os pêlos de Piera no pulsar de minhas glândulas para que seja d’Ela em minha tela a essência de mim mesmo aqui derrotado sobre o mouse sem jamais esperança de céus para envolvê-La nem pau para fodê-La e pelo sagrado programa que excide rugas e celulites e estrias queira Deus que eu faça desta Eva a Nossa Senhora do Último Dígito e que Ela apareça nesta mísera cela Bendita entre as capas de revista para salvar as almas elétricas de todos os homens antes que o sexagésimo café esfrie sobre a renitente tendinite deste solitário gigolô de imagens e expire o prazo para criar outro pôster de borracharia agora na hora de nossa morte amém.
Vila Madalena (SP), inverno, 2002.” (ipsis litteris, in Céu de Lúcifer, p. 73)

terça-feira, 29 de março de 2011

Breve lapso de razão. Suelen Buschtabieren


Alfazema. Mal desço do elevador e já sinto a fragrância que ela adora colocar depois do banho. O corredor fica tomado. E por falar em banho, ela costuma levar horas no seu, tanto que com freqüência digo que ela tem um parentesco com algum tipo de peixe, ou quem sabe uma mitológica sereia. Talvez numa das primeiras e distantes cadeias evolutivas de sua família. Às 5 da tarde, como de hábito, põe A soapbox opera e fica ouvindo, incansavelmente, até que eu chegue e, então, peça para ela abaixar o som só um pouquinho. E ela me atende sempre sorrindo e dizendo que só estava esperando eu pedir. Aproximo-me da porta, dou três voltas na chave, como de costume, um tipo de senha que eu e ela combinamos. Assim terá certeza que sou eu. Percebo que, hoje, o perfume está um tanto quanto exagerado, muito além do normal. Chego a sentir um pouco de vertigem, mas suave apesar de incômoda. Ao som mágico de Supertramp, ela vem em disparada rumo à porta, como sempre, salta nos meus braços, se agarra como uma criança e fica por segundos pendurada, com as pernas cruzadas e presas nas minhas costas. Só até eu reclamar, dizendo socorro!, porém, feliz. 

Digo que ela é pesada demais para essa brincadeira, entretanto gosto quando ela faz. Antes que eu possa largar minha pasta e meus livros, ela começa um verdadeiro festival de beijinhos. Beija minha boca, meu rosto, meu pescoço e vai pedindo para irmos ao quarto, dizendo que esperava ansiosa a hora de minha chegada. Tento acalmá-la, e eu, fazendo cerimônia, vou me deixando levar, resmungando só por resmungar, pois adoro aquele joguinho e tudo o mais que ela faz.

No quarto, ela arranca minhas roupas, até meio sem jeito, bruscamente, e tenho que controlá-la para que não as danifique, pois, apesar de não terem custado os olhos da cara, também não são produtos de 1 e 99. Ela começa um banho de gato que me deixa sem forças e, uma vez ou outra, eu a interrompo para beijá-la na boca e sorver sua doce saliva, que, misturado ao suor de meu corpo, fica estupidamente divino. Depois de 8 horas de estresse e tédio, não troco esses carinhos por nada. É com satisfação e ansiedade que vou para casa correndo. E assim fazemos amor todos os dias por volta das 6. Sem nos preocuparmos com horário, novela, filhos, janta, nada.

Saciamo-nos de felicidade. Acho que mais ela que eu, ou o contrário? Não sei. Antes que eu me dirija ao banheiro para tomar aquela ducha e me recuperar, vejo seu prato de comida intacto sobre a mesa.

Ela me segue e eu a olho, reprovando sua insistente falta de apetite. Com a desculpa de sempre, diz que estava sem fome e queria esperar para dividirmos a mesa. Eu, já sem nenhuma esperança, começo a perceber como ela está mais magra a cada dia que passa. Pálida e com uma silhueta anoréxica, quase mórbida. Não sei quanto tempo isso irá durar. Chantageio-a, dizendo que logo não haverá mais festinha quando eu chegar do trabalho. Não que eu não venha mais, mas porque, talvez, ela não dure muito, portando-se daquela maneira. Raramente come, só quando eu insisto, ou uso de subterfúgios.

No banheiro, fecho a porta e ouço seu choro, baixinho, fraco como ela. Em meio àquela música, que toca sem parar, parece uma triste cena de algum filme Noir, experimental. Algum das centenas que já assisti incansavelmente. Uma vez ela chegou a dizer que ouvir A soapbox opera era como rejuvenescer, alimentar-se com algo mais substancioso que qualquer alimento orgânico. Era algo surreal, etéreo, transcendente, dissera em meio a sorrisos e suspiros.

A música é linda, porém me entristece, pois me trazem momentos bons que tive, mas que não voltam mais. Tento não ouvir seu choro, para que eu não desande a chorar também. A água do chuveiro cai sobre minha cabeça e eu me deixo levar pela sensação refrescante. Mil coisas se passam pela minha mente sem que eu me dê conta das horas. Pareço distante, como uma viajante no tempo. De repente, olho para meus pés e, enquanto vejo alguns fios de cabelo seguirem rumo ao ralo, paro para pensar na minha vida, no meu trabalho e no meu relacionamento com uma mulher que amo tanto, conheço pouco, mas me entende tão bem. Tão cheia de sentimentos e, ao mesmo tempo, tão enigmática.

Ergo minha cabeça e deixo que a ducha jorre sobre meu rosto. Solto um suspiro, mais parecido com gemido de prazer. Olho para fora do box e não vejo a toalha. Menos mal que a porta não esteja trancada. Desligo o chuveiro e tudo está em completo silêncio. Não há mais música, nem choro, nada. Fico atônita e perplexa. Assusto-me ainda mais, quando tento me lembrar do nome daquela que vive comigo e nada. Não lembro mais de seu nome, nem quando e como a conheci. Um verdadeiro branco, como acontece às vezes com qualquer pessoa. Mas esse parece mais sério, pois faço um esforço enorme e não consigo me lembrar.

De repente, um vazio de memória. Só me vem à mente seu rosto, seu sorriso e... seu último choro. Acabo por sair nua pelo apartamento em busca da toalha e dela. Encontro a toalha esquecida sobre cama. Vejo que fizemos amor ali. Os lençóis anda aquecidos e amarrotados. Não posso estar louca. Todavia estou só, completamente. Não há ninguém mais aqui além de mim e minhas nebulosas memórias.

Tento refazer uma viagem de volta, mas a faço num esforço em vão. Tento colocar a música outra vez, para que me avive as lembranças, mas não encontro o cd. Fico, então, pensando se não tivera algum tipo de devaneio. Mas não! Tudo é tão nítido, apesar de confuso. Só não consigo uma conexão entre os meus pensamentos.

Visto-me às pressas para sair atrás dela. Mas a porta está trancada por dentro, com a corrente de segurança! Como terá saído? Ou será mesmo que estivera aqui? Se a encontrar, tudo voltará ao normal, penso com resignação. Ela me dirá seu nome e faremos amor novamente, como sempre, por volta das 6 da tarde, com perfume de alfazema e ao som de A soapbox opera, pela enésima vez. E eu não me importarei com absolutamente nada.

Mas e se eu não a encontrar? E se ela não existir e tudo tenha sido fruto de minha fértil imaginação? E se tudo não passar de uma fantasia louca de uma mulher solitária, eremita e anti-social? Não, tenho que ser mais otimista! Vou ao Shopping comprar perfume de alfazema e um cd do Supertramp, que tenha A soapbox opera.

Talvez ela volte! Ou, ao menos, eu venha lembrar seu nome! E se eu a encontrar, prometo não reclamar de sua falta de apetite! Prometo que ficarei mais tempo na cama com ela, mesmo que já tenha passado das 6 da tarde! Retribuirei o banho de gato, faremos um 69, como ela sempre pedia e eu, por preconceito, rejeitava a idéia. Não deixarei uma parte sequer de seu franzino e lindo corpo sem que minha língua toque. A levarei ao êxtase, assim como ela me levou inúmeras vezes.

E, depois?... Depois não irei mais tomar banho sozinha. Nunca mais! Assim não haverá mais choro. E, claro, se houver, será de felicidade, mas será imperceptível sob as águas do chuveiro. Se eu a encontrar, espero. Sim, se eu a encontrar, prometo que seremos muito, muito felizes... Para sempre! Mas... e seu não a encontrar?.. Bem! Se você adorar alfazema e ficar encantada ouvindo "A soapbox opera"... Ou conhece alguém com essas características... Escreva para mim!



sábado, 26 de março de 2011

Manhã de domingo. Raul Arruda Filho

Erro de cartório ou desacerto da vida. Difícil de precisar. Melhor seria ficar em casa, assistindo futebol ou fazendo palavras-cruzadas. Loucuras farejam tempestades. Quem é que algum dia ouviu falar de um homem chamado Sábado? Probabilidade pequena. Muitas vezes as surpresas se escondem nos arquivos da polícia. Uma ficha perdida na gaveta próxima da janela. Um nome. Nome raro, provavelmente único. Histórias complicadas, mistérios de Ellery Queen, rastros humanos. Por isso mesmo é que alguma coisa estava fora do lugar, naquele lugar. A porta aberta do viatura policial. Do lado direito do motorista, o terreno baldio. A fumaça do cigarro interrogou a esquina onde foi encontrado o corpo e suas tatuagens. Nas costas. Buracos de bala. Rosa sangrentas. Os pobres moram no subúrbio. Sem exceções. No subúrbio, Sábado não foi feliz. Em outros lugares também não teve sonhos tranqüilos. Na calçada, o sangue coagulado, geometria improvável, quase uma galeria de arte. Morte ao entardecer, foram as palavras aflitas do radialista, em transmissão especial, direto do local onde foi encontrado o cadáver. Final de manhã, no domingo. Sol forte. Poucas nuvens. Uma brisa fraca. Melhor esperar pelo amanhã, dormindo.
 
Raul Arruda Filho. (02/03/2011)


terça-feira, 22 de março de 2011

Mundo, beleza esquecida, esperança perdida. Marcelo Rodacki

“Eu acuso. Acuso esta cidade de descrença. É uma cidade que pensa que pensa, mas não fantasia. Raciocina, mas não cria. Acuso esta cidade de desistência. Acuso esta cidade de não mais acreditar que a inocência pode ainda nos guiar. Acuso esta cidade de ter se rendido ao cinismo, ter brutalizado a ciência e esquecido a poesia. Graduados senhores, não fechem a porta ao sonho humano, pois cidade que não sonha, morre.” Luiz Fernando Carvalho.

Senhora presidenta,  demais membros da mesa, Professora Jacqueline, Amigos, Colegas,
Convidados,

Bom dia.

Mundo, beleza esquecida, esperança perdida.

Hipocrisia, inveja, ciúmes, egoísmo, ódio, raiva, ganância, corrupção, ambição, descrença, guerra, violência, sangue, injustiça, morte. Este é o nosso mundo. É o que vemos, escutamos, falamos, sabemos. Estou aqui para fazer um apelo. Um apelo pela vida. O mundo não é aquilo que vemos. E o que está escondido. Nossos corações estão tão cheios de desgraças que não somos capazes de ver a beleza do mundo. O amor. Sentimento mais nobre do ser humano. Livre na vida e nos sonhos das crianças. Trancado e esquecido no coração dos adultos.

A infância é a fase mais espetacular da vida. Nela conseguimos sonhar, imaginar um mundo melhor, crer, viver. Cante, dance, sorria, abrace, beije, confie, acredite, sonhe. Sonhe e lute por ele. Defenda-o e faça-o estar presente em seus pensamentos. Quem não sonha não vive, sobrevive.

Ame seus amigos, sua família, seus colegas, seus professores, o mundo, a vida. Ame com todas as forças. Refiro-me àquele amor cuja pessoa amada não precisa estar ao seu lado para que você seja feliz. Basta que ela esteja feliz. Seja onde for e com quem for, pois o amor verdadeiro é eterno. Resiste à distância, a intrigas, à maldade, aos erros, à morte. Confie. Acredite no outro. Se te ofender, perdoe-o de toda a alma. De a ele a chance de corrigir seu erro e fazer certo. Todos nós temos o direito de se arrepender e tentar de novo. Quem julga e pune, um dia também será julgado e punido com a mesma intensidade. Entenda que cada um é cada um. Ninguém erra por querer errar. Cada um de nós faz o que pensa ser certo. Compreenda o próximo. Ame-o. Pois o amor suporta qualquer desavença.

Perceba a beleza do mundo e da vida naquilo que há de mais simples, pois é na simplicidade que está concentrada toda a pureza existente. Abram seus olhos. Não se deixem enganar pela crueldade daqueles que não conhecem o mais nobre dos sentimentos. Por mais maldades que sejam praticadas, ainda há tempo de corrigir os erros humanos e dar uma vida digna aos seres habitantes deste planeta. Não podemos mudar o que já foi feito, mas podemos mudar o que está por vir.

Apreciem as artes. Obras resultantes dos mais profundos e nobres sentimentos humanos. Seja a literatura, a música, o teatro, ou as artes visuais. Não precisa ter um bom ouvido ou bons olhos para sentir a arte. Basta que abram seus corações para o que é belo e que mergulhem na sua imaginação.

Apelo pela esperança. Esperança de um mundo melhor. Esperança de uma vida nova. Esperança de dias melhores. Esperança de um dia acordar e estar em paz o mundo. Esperança de a infância ser respeitada e apreciada. Esperança de que todos sejam capazes de sonhar. Esperança de que a beleza e a arte um dia triunfarão. Esperança de haver real justiça. Esperança de o amor reinar na vida humana. Esperança de o tempo apagar as feridas deixadas por nós. Esperança de haver compreensão. Esperança de felicidade. De alegria.

Ainda há tempo. Tempo de sonhar, de acreditar, de confiar, de viver, de amar.

Obrigado, Marcelo Rodacki.

Para o meu querido amigo Thales, que demonstrou, ao longo de 2007, ter um coração gigantesco. Amigo fiel, companheiro de todas as horas. Um grande abraço de seu amigo e admirador.” Marcelo Rodacki.