Preciosidades

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Manifestim. Zeh Gustavo



Eu faço poesia-quase.
Monto na beirinha do caos de meu porto,
sacolejo minhas saliências,
esfrego-as no poste e vou andar.

Eu faço poesia-quase
como se estivesse (prestes) a comer um xibiu,
conforme desdiria meu cumpadre Chico Doido de Caicó.

Só boto laço em poema
depois de macerar o meu dia maçante,
cuja carcaça eu carrego no cangote.

Só broto traça de palavra
pois o troço me atrai
- e porque eu sou meio trololó.
Mastigo uma dona que chamo saudade
e me meto em entres,
raramente encapuçado.

Eu faço poesia-quase:
solto frase abilolada para ajudar a prejudicar lirismos
que se pretendam retos.
Só breco um poema para fins de embromá-lo
em curvas de briga.

Faço então poesia-quase;
e pode ser que eu inté cause espelhança
a partir deste meu calango de movimento

P.S.: "Manifestim", poema extraído do livro "A perspectiva do quase" de Zeh Gustavo, 2008.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um lugar como outro qualquer. Paulo Scott




Foram mais de quatrocentos quilômetros. Apesar das dores nas costas, estou exultante, é nossa centésima apresentação. Tudo parece em ordem. Os convidados chegam aos poucos. A banda começa a tocar. O sujeito que nos contratou se aproxima (é um dos padrinhos do noivo), convida-me para um uísque na copa. Aceito. Ele enche meu copo como se estivesse fazendo um grande favor, tira do bolso do casaco trinta notas de cinqüenta, conta uma por uma e as coloca sobre o balcão. Agradeço. Ele sai sem rodeios. Fico bebendo sozinho, provo uns salgadinhos e a salada de maionese. Termino o uísque, volto pro salão (está quase cheio). Os pares estão animados, a música dos garotos é boa, empolgo-me. Atravesso a pista em direção a umas gurias que conversam eufóricas, próximo à porta de entrada, peço licença, convido uma delas para dançar. Não danço com preto, ela responde. As outras riem, dizem que fez muito bem. Pelo jeito, aqui ninguém dança com o pessoal da minha laia. A mais bonita diz que aprendi rápido e me recomenda o puteiro perto do trevo de entrada da cidade: lá tem umas indiazinhas fedorentas que se tu pagar direitinho dançam contigo a noite toda. Riem ainda mais. Dou um passo à frente: não dançam com preto? Então, ninguém mais dança nesta merda. Emudecem por completo. Faço sinal pro vocalista, os músicos param imediatamente, começam a desmontar o equipamento. O sujeito que nos contratou se aproxima, devolvo-lhe o dinheiro, ele tenta argumentar, viro as costas, vou em direção ao microônibus. Ligo o motor, fico esperando. Assim que o último músico entra, arranco sem dar uma palavra. No terceiro quarteirão, um deles reclama: viemos até aqui pra não tocar... não acredito. Olho-o pelo retrovisor, respondo: vamos tocar sim e vais ser de graça... deixa só eu encontrar um tal lugar ali no trevo de entrada da cidade.

Conto transcrito do livro “Ainda Orangotangos” (2007, Editora Bertrand Brasil, 84 páginas, R$23,00), do escritor gaúcho Paulo Scott.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

O novo sempre vem. Belchior



(...) Minha dor é perceber, que apesar de termos feito tudo o que fizemos ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...

Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém. Você pode até dizer, que eu tô por fora, ou então, que eu tô inventando...

Mas é você que ama o passado e que não vê. É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem...

(transcrição textual de parte da letra da música “Como nossos pais”, de Belchior, sucesso na voz de Elis Regina)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A Vereadora Antropófaga. Pedro Almodóvar


E agora me leve onde está o seu pai. Até já Conchita, volto logo. Vamos!


A VEREADORA ANTROPÓFAGA


Estou farta de tudo... dos homens, das dietas, do colágeno, da lipoaspiração, da política... de tudo, menos de sexo.


Sou conselheira de assuntos sociais... e tanto a nível pessoal quanto a nível profissional... eu acredito que o sexo é um assunto profundamente social. E prazer sexual é algo que todos deveriam ter acesso. Sem preconceitos nem limites. Tem que se incentivar a cultura da promiscuidade... a troca de casais, os casais múltiplos. Reconhecer o desejo como o principal motor de uma sociedade melhor.


Quando se deseja alguém, normalmente, não quer que lhe aconteça nada de mal. Você se solidariza com ele. A não ser que seja rejeitada, é claro. Creio que esse é um tema muito interessante e ainda inexplorado. Especialmente do ponto de vista feminino... político e de direita.


Vou tirar um ano de licença para escrever um livro que aborde esse tema. Um livro onde eu possa escrever as fantasias que me vem à cabeça... durante as assembléias e solenidades na prefeitura. Inaugurações de parques, túneis, missas na catedral de Madrid, etc. Nessas ocasiões, como em todas, só penso em sexo.


Meu único interesse é olhar o traseiro dos homens, seus pés, seus cacetes... por isso eu uso óculos escuros. Não por fobia à luz como costumo dizer. Mas para poder olhar para onde eu quiser. Minha tara começou muito cedo, até nisso fui precoce... Comecei a me interessar pelos cacetes com 4 aninhos... eu podia pegá-los só levantando a mão... como se colhe uma fruta...


No princípio tive muito êxito, as pessoas achavam graça... até que todos os homens da minha família e amigos... - entre os quais não havia nenhum pederasta - começaram a me rejeitar quando me viam chegar. Conheci muito cedo a marginalidade. É muito duro. Que comecem a te desprezar e a te julgar só com 3 aninhos. Me educaram à base de gritos:


"Isso não se toca!"


"Isso não se come!"


Ah, meu Deus, que época! Eu creio que Franco foi um bom governante... mas no que diz respeito ao sexo, ele não entendia nada. Do corpo do homem eu saboreio tudo. Mas o que mais gosto são os pés... os pés! Me deixam louca.


Uma vez me ocorreu comentar isso numa festa do partido. Num momento em que todos já estavam meio altos. Bem, minhas colegas levaram as mãos na cabeça. A Calie, por exemplo, adora comer patas de porco... Que diferença existe entre comer os pés de um porco ou de um homem? Quando falei isso, a Conselheira de Saúde me disse que ela prefere os caralhos... e que gosta que lhe batam com o caralho na cara antes de metê-lo na boca.


Falei para ela que esse é o problema do PAP, que transmitimos aos espanhóis a imagem de um partido defasado e ancorado no passado. Eu também gosto que me fodam a faringe, como todos, mas eu quero algo mais! As pessoas esperam algo mais de nós.


Temos que oferecer algo mais aos cidadãos... alternativas que os façam evoluírem e serem mais felizes. O realmente novo, e que poderia atrair votos dos socialistas aborrecidos... - a isso dedico um capítulo inteiro do meu livro - é que, por exemplo, o que eu mais gosto quando estou com um caralho na boca... eu gosto que enfiem o dedão do pé na minha vagina... ou melhor, os dois dedões do pé na vagina, ou um na vagina e o outro no cu. E concretamente, quando estou bem lubrificada, o que eu gosto... e proponho aos cidadãos que experimentem em suas casas... porque não há nada mais democrático que o prazer...


O que eu gosto é me abaixar e começar a comê-lo dos pés ao tornozelo. Bem, uma das minhas fantasias é comer um homem inteiro, começando pelos pés. Já tentei... já consegui meter um pé inteiro na boca até o tamanho 45...


Que tal? Já tenho o título do meu livro!


"Uma porca no PAP"


Tem apelo comercial, não acha? Pode me acusar de qualquer coisa, menos de autocomplacente. Antes de me deitar, faço um pouquinho de autocrítica e já posso dormir tranquila. Acontece que ultimamente não tenho dormido bem.


Às vezes penso que pode ser a cocaína. Mas não tenho nenhum problema em parar. Eu tenho controle. Que você acha da Pina? Não é bonita para ser modelo... Boazuda... mas vê, ficar à espera de um homem dia e noite... isso é puro século XIX.


Quando meu marido me deixou, há alguns dias... enquanto ele fechava a porta eu gritava bem alto, para que ele pudesse ouvir. "Que venha o próximo!"


Saí para a rua e ele estava me esperando, o próximo.


Mas tive uma desilusão muito grande. Silvio te contará. Quer que te conte?


- Olá.


- Olá.


- Quem é você?


- Maribel, e você?


- Chon...


- Viu que eu caí no sono, Chon?


- Como um tronco.


- Tive um sonho.


- Sim? E o que sonhou?


- Acho que era um sonho erótico.


- Que maravilha... e o que acontecia?


- Não lembro bem, mas acho que tinha a ver com os dedos dos pés de um homem...


- Com os dedões?


- Sim.


Eu começava a comê-los e acabava comendo o homem inteiro. Que coisa não?


Mas acho que a antropofagia te fez muito bem. Está radiante! Apesar da aparência...


Transcrição minha do "script" para o textual do curta (8 min), "A Vereadora Antropófaga" (La concejala antropófaga), de Pedro Almodóvar, 2009.


Tradução: GrupoVirtuComete


Acesse o curta na íntegra pelo Youtube:


http://www.youtube.com/watch?v=0lSihiuB0Jw


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ratatouille (2007)


Assistir a filmes legendados também é um bom exercício de leitura. Senão o que dizer acerca da passagem a seguir, extraída do filme “Ratatouille” (2007).


“No dia seguinte! Publicou sua crítica:


De certa forma o trabalho de um crítico é fácil. Nos arriscamos pouco e temos prazer em avaliar com superioridade os que nos submetem seu trabalho e reputação. Ganhamos fama com críticas negativas que são divertidas de escrever e ler. Mas a dura realidade que nós críticos devemos encarar é que no quadro geral, a mais simples porcaria talvez seja mais significativa, do que a nossa crítica.


Mas há vezes em que um crítico arrisca de fato alguma coisa, como quando descobre e defende uma novidade. O mundo costuma ser hostil aos novos talentos, às novas criações, o novo precisa ser incentivado. Ontem à noite, eu experimentei algo novo, um prato extraordinário, de uma fonte inesperadamente singular.


Dizer que tanto o prato quanto quem o fez desafiam a minha percepção sobre gastronomia é extremamente superficial. Eles conseguiram abalar minha estrutura. No passado, eu não fazia segredo quanto ao meu desdém pelo famoso lema do chefe Gusteau. Qualquer um pode cozinhar. Mas, percebo que só agora compreendo realmente o que ele queria dizer. Nem todos podem se tornar grandes artistas.


Mas, um grande artista pode vir de qualquer lugar. É difícil imaginar origem mais humilde, do que desse gênio que agora cozinha no Gusteau's. Que é na opinião desse crítico, nada menos do que o melhor chefe da França. Eu voltarei ao Gusteau's em breve com muita fome. Foi uma grande noite. A mais feliz da minha vida.”


(Legenda do filme “Ratatouille” de 2007, aqui transcrita em forma textual”)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Sugestões Espanto-Antitédio. Hilda Hilst


... XI

Compre manteiga. Passe-a nos dedos. (Esqueça de Marlon Brando.) Chupeos. E diga em tom de oração: que vida solitária, meu Deus. (Contenha-se.)

XII

Compre uma língua de tucano (é uma umbelífera), uma língua de vaca (Chaptalia nutans é o seu nome científico, não vá até Santa Catarina por causa disso), um lírio branco (Lilium candidum), dois caquis (não é cáqui, não vá comprar o brim da cor dos caquis), ferva durante cinco minutos. Depois jogue fora. É uma simpatia pra você não dormir. (...)


Hilda Hilst (1930-2004). "Pequenas Sugestões e Receitas de Espanto-Antitédio para senhores e donas de casa" (p. 48/54). Extraído do livro "Contos D'Escárnio - Textos Grotescos", 2001, Editora Globo.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Bem-te-vi. Zé Urbano *



O bem-te-vi cantou duas vezes,

três vezes, quatro vezes,

cinco vezes, seis vezes,

sete vezes.

O bem-te-vi cantou pracaralho.


Poema do livro de Zé Urbano, chamado:

Abcdefghijklmnopqrstuvwxyz, da Editora Ibis Libris de 2009

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A perda. Vitor Otávio Biasoli


Perdi meu pai. Perdi o trem.

A vida pulsa na plataforma da estação

e não há caminho além da curva desta estrada.

Apenas a ausência do vento

Arranhando o vidro dos meus óculos.


P.S.: poema vencedor de concurso literário em Santa Maria, RS. O autor é o Professor Ms. (Doutorando) Vitor Otávio Biasoli do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria ,RS). Foi organizador do livro "Prado Veppo - Obra Completa", de Pedro Brum Santos.