Preciosidades

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Medo da Eternidade. Clarice Lispector


Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

Conto que me foi passado via e-mail. Não sei de qual livro da autora ele foi retirado. Clarice Lispector dispensa apresentações.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Antecedentes criminais poéticos. Fabrício Carpinejar


Poesia não é um crime premeditado, em que o escritor forja álibis e procura esconder as pistas. Não sou capaz de dizer: vou escrever um poema. Escrevo como quem existe. Ninguém hesita em existir. Percebo a poesia desde o princípio como um crime passional. É uma explosão de nervos, de música e de pensamento. Surge de um ato solitário, intransferível e altamente singular. Significa matar o amor para que ele sobreviva sem a pieguice. Desbastar o poema para que só fique o essencial. O verso é como uma escultura: o rosto está lá dentro, sendo preciso descobri-lo extraindo pedra. Há quem pense que o texto poético se faz derramando sentimentos no papel, inflamando o ego da namorada, chantageando os amigos com loas, descrevendo as belezas do mundo, com aquela pelúcia própria da hibernação dos ursos (e que só dá alergia!), registrando nossos melhores momentos no diário. É justamente o contrário: não é desabafo, poesia revela a realidade sem intermediários e filtros, uma comoção psíquica, nunca servindo para maquiar ou obscurecer o cotidiano, mas para apanhar os detalhes e as distrações que tornam o leitor mais verdadeiro e intenso.

Explicaram ao jovem que versos servem para o deslumbramento, quando eles estão interessados em encontrar algo que expresse sua inquietude civil e o vigor de seus desejos. Na verdade, ensinaram ao adolescente a não gostar de poesia, porque a apresentaram tão fraturada e deslocada do seu mundo, que ele foi tirar suas fotografias 3X4 nas letras da música popular brasileira. Ninguém avisou que o poema pode ter uma história, um enredo, um suspense, uma indignação. Apesar de todo modernismo, pós-modernismo e hipertividade textual, ainda predomina uma visão romântica do gênero, que não condiz com a aventura das diferenças que a palavra propõe. Falta rigorosamente na poesia um meio-termo entre o popular e o erudito, entre a realidade e o imaginário. Falta uma linguagem que testemunhe e critique nosso tempo, capaz de dar uma função coletiva às descobertas pessoais. Que não seja reduzida a trocadilhos publicitários ou a academicismos de dicionaristas de plantão. A raiz amarga do problema reside na ausência de orientação. Por que a poesia não está comparece como criação na sala de aula, ficando restrita à leitura avulsa de clássicos e bambas do vestibular? Escrever é ler em dobro.

O adolescente começa na literatura mediante a poesia, seja em cartas, seja em cantadas. Sem acompanhamento escolar e sem afiar a linguagem ao longo dos anos, o mesmo adolescente atrofia seu gosto e vai considerar inacessível a interpretação poética. Ninguém nasce jogando futebol, tocando violão, isso é coisa que se aprende exercitando. A situação se agrava pelo medo da subjetividade do professor, que pretende arrancar uma única resposta de toda a turma, enquanto há tantas reações de acordo com a criatividade do interlocutor. O vestibular já é um outro tormento: poucos vestibulandos são entusiasmados a degustar os livros. Em cima da hora, pegam atalhos nos cardápios, manuais de literatura e nos resumos dos movimentos. No fim da conta, até os autores errariam as questões sobre suas obras durante as provas.

Os poemas são considerados fáceis na feitura e complicados na absorção. Quais os motivos? Ao invés de servir para uma melhor percepção da convivência, tem sido empregada para enrolar e reproduzir atitudes individualistas. O adolescente crê ingenuamente que poesia é para a vaidade, quando ela deveria atuar para combatê-la. O mercado apenas reproduz o pessimismo. Fato comprovado a olho nu: na maioria das livrarias, a seção de poesia dorme em algum canto soturno, no alcance visual de um cachorro e vislumbrada na hora de amarrar o tênis. Do mesmo modo em que se percebe um aumento de poetas on-line, é uma maratona localizá-los nas prateleiras. O mercado está disseminado, o que não significa organização.

As tiragens estão progressivamente menores. Dos mil exemplares de antigamente, os escritores contam com um leve pacote de 500 ou 300 exemplares, restritos à distribuição entre amigos. A expressão "originais na gaveta" está sendo substituída por "livros na estante". Vir a público deixou de ser o desafio, agora é conseguir a distribuição da obra. Publicar poesia tem servido apenas para o autor alardear que cumpriu um dos três objetivos clássicos da biografia, além de ter um filho e plantar uma árvore.

Devemos também esquecer a literatura heróica, de ressentimento histórico, que advoga o passado perante o "resto do Brasil" (essa expressão diz tudo sobre a desvalia megalomaníaca dos gaúchos). Não adianta fazer ouvidos de mercador ao alarido da esquina. Não conseguiremos dormir e nem devemos. Bento Gonçalves não é mais importante do que a senhora alimentando seu gato às 6h, diante do meu prédio.

Fabrício Carpinejar
Publicado no Diário de Santa Maria, Santa Maria (RS) - Copiado do Blogue do Autor.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Ainda Orangotangos. Paulo Scott


Trinta e quarto de agosto. O ventilador roda, insistente. Ele acorda gélido, acaricia o que sobrou da namorada sob o lençol. Sua bexiga arde de frio. Sai da cama, o pé direito bate na xícara, o pó se espalha. Quarenta mil. Tenta recolher, desiste. Os pregos sob a pele do braço direito incomodam, ao redor deles há hematomas quase pretos. Foi estupidez brigar com o pai dela, socá-lo daquele jeito. Saudade! O que o merda entende de saudade? Segura a glande, abre os curativos, pega a pomada, espalha sobre as feridas, fecha com a mesma gaze. Vai até a cozinha. Droga! O vizinho começa a tocar o Paulinho da Viola de sempre. Abre a geladeira, os pães de sanduíche (sacos e sacos da mesma marca) aguardam os fungos se multiplicarem. Estão quase prontos, pensa. Pega três ovos, duas maçãs, a urina fervida da ex, põe no liquificador. Bate. A mão desliza até o controle remoto. Pronto! O som explode nas oito caixas espalhadas pela cozinha, acaba com Paulinho da Viola. Desliga o liquidificador, côa, usa o caldo para regar as violetas. Vai ao banheiro. É forte o cheiro de queimado. A pele (não se sabe de quem) aguarda sob a água morna do chuveiro, os olhos dela miram-no pedindo paz. Ele prossegue, ajoelha-se par tomá-la e vesti-la. A pele está apertada, ele fica aos berros dentro dela. Ninguém ouvirá. A pele não sabe quem realmente é, apenas que novamente há gritos intermináveis dentro dela (não há nome viável para esses dois juntos). Escolhem roupas boas, caminham até a porta de entrada. Está sempre aberta (ninguém ousa passar). No cabide, uma bolsa de mulher; eles a pegam, tiram de dentro uns óculos escuros. Saem (sem tocar nos presentes de casamento). É curioso, é como se mover dentro de uma geléia de pimenta. Descem as escadas, caminham pela Bento Gonçalves, encontram o menino na esquina da Guilherme Alves, sobem a lomba. Chegam em frente à casa antiga. Empurram o portão de ferro, mandam o rapaz esperar, ajeitam o cabelo e a camisa de seda, tiram os óculos, tocam a campainha. A filha da empregada abre. Cadê o pai?, perguntam. Ela não responde. Atravessam o corredor escuro, os tacos do parquê estão soltos, e a tinta verde-água mofada nas paredes. O velho está sentado à mesa de jantar, lê o jornal do dia. Cumprimentam-se. Faríamos cinqüenta e cinco anos hoje?, dizem com prudência. Quem faria cinqüenta e cinco anos hoje?, o velho pergunta e ri. Eu... e a mamãe... quero dizer.... se ainda estivesse viva. Não mencione a pessoa dela, o pai ameaça esbofeteá-lo. A cumulação de olhos aguarda o tapa que não vem. Estou com fome... é meu aniversário. O velho ri, manda a empregada pôr mais um prato na mesa e avisa: hoje, tua filha não comerá. A empregada concorda. A comida é servida (está envenenada como sempre, dizimou a família inteira, mas o velho está custando, e ainda há este tipo, que aparece uma vez por ano se fazendo passar por filho, também). O pai almoça rápido e se retira, vai sestear. No meio do corredor, arrota alto. Eles olham a empregada, arrancam a comida dela com destreza criminosa, ela ainda tem tempo de cuspir no frango. Eles viram o prato dela no seu. Ela se levanta. Eles pedem cerveja: toda que houver, é meu aniversário! Ela traz meio engradado e sai. Eles bebem toda a cerveja, assistem à sessão da tarde inteira (riem, choram), que festa! A cerveja acaba, hora de ir. No meio do corredor, arrotam. Param em frente à última porta, à direita antes da sala, batem: licença, pai. É dinheiro, aposto que é, diz o velho, deitado sob duas mantas térmicas. Mas antes vou te dar um conselho... na vida, o segredo é suar. Sim, suor, eles respondem, querendo agradar. O velho pega a carteira, cinco notas de vinte. Despedem-se. Na sala, eles ainda tentam violar a filha da empregada, mas a menina está armada e lhes espeta uma tesoura na altura do quadril, mantendo-a em punho, abre a porta, eles saem. O menino os aguarda: conseguiu, pai? Não tem idéia de como foi difícil, respondem, esforçando-se para não cambalear. Conseguiu? Não, esse velho não presta, conversamos até agora, eu disse pra ele que se não tivesse os vinte e cinco, ao menos me desse quinze ou dez, mas nem isso. Desalmado! O menino se desespera: então, meu filho vai morrer. Não!, neto meu jamais ficará desamparado... Quanto tu tem aí? Dois, o menino responde e o encara esperançoso. É suficiente, tomam o dinheiro dele; irei ao Centro fazer um empréstimo, darei um rim meu como garantia, a financeira não pode recusar. Pai, muito obrigado, o menino chora. Descem a Guilherme Alves, o menino enxuga as lágrimas na manga da camiseta, eles aproveitam a distração para ajeitar as duas notas junto ao resto do dinheiro no bolso da camisa. Na esquina, botam os óculos escuros, dizem ao menino que vá pra casa e dê bastante água ao bebê: é a melhor coisa pra febre. Tomam o ônibus, observam o menino de longe, descem duas paradas depois, sem pagar: está indo pra rodoviária?, eu preciso ir até a Salgado Filho... pode abrir, por favor? Entram no prédio, sobem as escadas, entram no apartamento. Ele grita com toda a força dentro da pele. Ela rasga. Ele a despe, vai ao banheiro, liga o chuveiro, espera a água amornar. Deixa a pele ali no boxe, ela o encara pedindo paz. Ele ri (tem medo de si mesmo, é verdade). O cheiro de queimado volta, ele tranca a porta. Vai à cozinha, enfia o cateter na bexiga, urina no panelão de alumínio (a melhor coisa do dia), põe a ferver. Senta no sofá, conta o dinheiro, abre os curativos. Ouve barulho na entrada, alguém se arrasta. Que idiota ousaria? A luz do corredor reflete na parede uma sombra lenta. Pela altura, um bebê.


Texto transcrito extraído do livro "Ainda Orangotangos", de Paulo Scott, de 2006, editora Bertrand Brasil.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

“O livro do futuro”. Ziraldo


“Muito se fala sobre o futuro sombrio do livro diante do avanço de outras mídias. O livro precisará se adaptar para conseguir sobreviver à era digital?” (Revista Aplauso)

Não consigo imaginar que outro suporte a literatura e a poesia vão encontrar para se exercer. O livro é o objeto mais perfeito que o ser humano inventou. Se eu conheço a alma humana, uma lágrima há de manchar, sempre, a página de um livro; quem lê não vai deixar nunca de sublinhar a frase que marcou sua vida, haverá sempre uma violeta para alguém esquecer guardada entre uma página e outra. Há vários anos, logo que tomei conhecimento dos mecanismos da internet, eu inventei o livro do futuro: uma prancheta escolar, tendo na sua superfície uma tela branca de 14x24, com textura de papel. Você compraria na livraria um disquinho com toda a Divina Comédia, por exemplo, enfiava o disquinho numa ranhura da prancheta, apertava um botão e aparecia, na tela branca a capa do livro. Apertava de novo, aparecia a página de rosto, depois a página 1 (ou 5) e aí começava o livro, passando página por página com o apertar do botão. Você não precisava molhar o dedo. A prancheta teria cheiro de livro novo e as letras seriam todas com serifa, pretas sobre fundo branco. A gente ia ter, em casa, estantes com livros de papel só para enfeitar e matar as saudades. Acredito, de fato, que as enciclopédias e os livros de informação vão desaparecer para sempre. Mas os livros de versos ou de histórias, como a da madame Bovary, nunca. Jamais. (Entrevista de Ziraldo à Revista Aplauso nº 103, p. 9, 2009)

Ziraldo não menciona a data em que teve esta sua projeção de como seria o seu livro do futuro, mas o futuro está aí, agora, neste momento e, talvez, o livro mencionado por ele já exista e tenha até nome. Chama-se, em inglês, “E-Reader”. Pode ser o Sony Reader ou o Kindle. Segundo reportagens da Revista Superinteressante nº 272 de Dezembro de 2009, páginas 23 e 36, o Kindle além de substituir o livro físico de papel, poderá contribuir para a popularização da leitura, mas com um sério ônus. Segundo a pesquisa divulgada pela Revista, a produção de um e-reader, como o Kindle, gera 168 kg de CO2, contra apenas 7,46 kg de CO2 para a produção de um livro, entretanto, apesar do e-reader gerar 22 vezes mais poluição, compensa pela capacidade de armazenamento, pois num e-reader como o Kindle cabem 2000 livros comuns. Há perspectivas de que sejam vendidos mais de 14 milhões de e-readers, no mundo, até o ano de 2012. Isso evitará a “liberação de 1,6 trilhão de quilos de CO2, o equivalente à poluição gerada a cada ano por 800 milhões de carros”. A manchete é: “O Kindle pode salvar o mundo”. Será? E, se for, que venham então os “e-readers”. Welcome to the future! (Ramiro R. Batista)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Nossos filhos. Affonso Romano de Sant'Anna


Os filhos crescem...

"Há um período em que os pais vão ficando órfãos de seus próprios filhos. É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados.

Crescem sem pedir licença à vida. Crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias, de igual maneira, crescem de repente. Um dia, sentam-se perto de você e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.

Onde é que andou crescendo aquela pessoinha que você não percebeu? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços e o primeiro uniforme do maternal?

A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça!

Ali estão muitos pais ao volante esperando que eles saiam esfuziantes sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com o uniforme de sua geração: incomodas mochilas da moda nos ombros.

Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados. Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias, e da ditadura das horas. E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros. Principalmente com os erros que esperamos que não repitam.

Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos. Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas.

Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvirmos sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, posters, agendas coloridas e discos ensurdecedores.

Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que gostaríamos de ter comprado. Eles crescem sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto.

No princípio, subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhos. Sim, haviam as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim.

Depois chegou o tempo em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados. Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes".

Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito (nessa hora, se a gente tinha desaprendido, reaprende a rezar) para que eles acertem nas escolhas em busca da felicidade. E que a conquistem do modo mais completo possível. O jeito é esperar.

Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos, e que não pode morrer conosco.

Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto. Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam."


(Texto atribuído a Affonso Romano de Sant'Anna - Filólogo e Escritor)