Preciosidades

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um lugar como outro qualquer. Paulo Scott




Foram mais de quatrocentos quilômetros. Apesar das dores nas costas, estou exultante, é nossa centésima apresentação. Tudo parece em ordem. Os convidados chegam aos poucos. A banda começa a tocar. O sujeito que nos contratou se aproxima (é um dos padrinhos do noivo), convida-me para um uísque na copa. Aceito. Ele enche meu copo como se estivesse fazendo um grande favor, tira do bolso do casaco trinta notas de cinqüenta, conta uma por uma e as coloca sobre o balcão. Agradeço. Ele sai sem rodeios. Fico bebendo sozinho, provo uns salgadinhos e a salada de maionese. Termino o uísque, volto pro salão (está quase cheio). Os pares estão animados, a música dos garotos é boa, empolgo-me. Atravesso a pista em direção a umas gurias que conversam eufóricas, próximo à porta de entrada, peço licença, convido uma delas para dançar. Não danço com preto, ela responde. As outras riem, dizem que fez muito bem. Pelo jeito, aqui ninguém dança com o pessoal da minha laia. A mais bonita diz que aprendi rápido e me recomenda o puteiro perto do trevo de entrada da cidade: lá tem umas indiazinhas fedorentas que se tu pagar direitinho dançam contigo a noite toda. Riem ainda mais. Dou um passo à frente: não dançam com preto? Então, ninguém mais dança nesta merda. Emudecem por completo. Faço sinal pro vocalista, os músicos param imediatamente, começam a desmontar o equipamento. O sujeito que nos contratou se aproxima, devolvo-lhe o dinheiro, ele tenta argumentar, viro as costas, vou em direção ao microônibus. Ligo o motor, fico esperando. Assim que o último músico entra, arranco sem dar uma palavra. No terceiro quarteirão, um deles reclama: viemos até aqui pra não tocar... não acredito. Olho-o pelo retrovisor, respondo: vamos tocar sim e vais ser de graça... deixa só eu encontrar um tal lugar ali no trevo de entrada da cidade.

Conto transcrito do livro “Ainda Orangotangos” (2007, Editora Bertrand Brasil, 84 páginas, R$23,00), do escritor gaúcho Paulo Scott.

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