Preciosidades

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Hereditariedade. Adolf Dann Mittwoch (1911-1985)

Os terrenos e plúmbeos seres que sempre habitaram a superfície suportavam ignorantes uma sina que lhes parecia eterna, imutável. Lerdos, obesos e de aparência grotesca, jamais exibiram ares de empatia ou qualquer outra característica semelhante a sentimentos como: felicidade. Comportavam-se como parentes evoluídos bípedes de elefantes, só que desprovidos de trombas. Com pescoços ausentes, seus rostos quase nunca miravam para os céus, exceto quando deitados, mas eram incapazes de observar sob excesso de luz. Míopes por natureza, não distinguiam nada além de algumas dezenas de metros. Dotados de uma estranha capacidade de se reproduzir por um processo similar à mitose, por volta dos 20 anos, dobravam de tamanho e se partiam em dois, duplicando-se como gêmeos univitelinos. E assim esses espécimes tristes e aparentemente insensíveis se proliferaram sobre imensas áreas verdes, cultivando inúmeras variedades de árvores frutíferas, de onde retiravam suas únicas fontes de alimento: flores, folhas e frutos.
Houve um momento, inexplicável, em que milhares de outros seres, dotados até então da capacidade de voar com objetos muito parecidos com imensos guarda-chuvas, mantiveram contato físico imediato com os plúmbeos. Os céus pintaram-se então de repente com milhares de objetos negros redondos, que aos poucos foram caindo nas vastas áreas verdes dos terrenos plúmbeos. Com seus gestos ágeis e graciosos, gargalhando quase sempre numa inata e contagiante alegria e, através de uma radical mudança, quase revolucionária, os seres celestiais impuseram seus costumes, não imunes à fraca e insossa influência plúmbea. Coloridos, alegres e carismáticos, os celestiais voadores eram detentores de uma maleável capacidade híbrida de se reproduzir com qualquer outra espécie viva. E assim, de terrenos plúmbeos e voadores celestiais, surgiram os genitais.
 Os genitais herdaram características miscigenadas que, apesar de novas, não lhes permitiu a robustez e a força dos plúmbeos, nem tampouco a agilidade e a graça dos celestiais. Incapazes de se duplicar por mitose, nem cruzar por hibridismo, restou-lhes a reprodução copular entres os seus iguais, gerando, em progressão geométrica, espécimes frustrados, invejosos, soberbos, preconceituosos. Não demorou muito e sua revolta contra sua suposta situação de inferioridade, agregada aos inúmeros sentimentos negativos que profunda e intimamente desenvolveram, desencadeou uma violenta e sangrenta revolução. E assim os genitais, cegos pela inveja, extinguiram ensandecidos os plúmbeos e os celestiais, num horrendo e monstruoso genocídio.
Como não sabiam plantar árvores nem manusear os celestiais guarda-chuvas, destruíram as áreas verdes e passaram a se proteger das intempéries sob os pífios arrimos das máquinas de voar. E assim, tornaram-se nômades, sempre à procura de alimento e locais protegidos do tempo, deixando um rastro de destruição e desolação. E a superfície do mundo aos poucos foi se tornando um imenso deserto, árido, seco, morto...

Neste exato momento, um ser colossal, gigantesco, vira a página, não sem antes deixar cair involuntariamente algumas lágrimas, e, em seguida, fecha o livro no qual constata mais uma frustrante experiência. Depois, segundos depois, pega esse mundo na mão e, na sua pequenez, guarda-o numa imensa gaveta, cheia, repleta de muitos outros mundos, não muito diferentes do nosso. Ele, então, apaga a luz, deita-se na cama e, imóvel, fica à espera do sono, que, com certeza, não tardará em chegar, imperceptível. Sempre, sempre, sempre na esperança de dias, inspirações e experiências melhores.

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