Ela veio do quarto para a sala de estar, cautelosa como um sorriso amarelo.
Aproximou-se da janela, pressionou a testa contra a vidraça dura e espiou sem interesse o movimento de carros e transeuntes lá embaixo. Não gostava da Tijuca, não gostava mais. Voltou a cabeça na direção do marido, sentado à mesa, suspirando sem tédio nem hostilidade. Pensou em ficar calada, mas não se conteve:
"A mulher saltou do décimo andar com uma corneta na mão."
Ele sentiu o golpe. Digitava no micro, com a lentidão de costume, um longo artigo de história para uma revista mensal, e assustou-se. Mexeu-se na cadeira, tirou sem pressa os óculos de leitura e olhou para ela. Um olhar bom, verde-água, bem-treinado em salas de aula.
"Que mulher?", disse João. "Velha ou nova?"
"Na faixa dos trinta", disse Maria. "Uma viúva que morava sozinha."
Uma viúva nessa idade, pensou ele. Ainda existiam viúvas? Não se deu conta da tolice, mas teve uma idéia brilhante, coisa de detetive.
"Não recebia ninguém?", disse João.
"Não sei", disse Maria. "Estavam acabando de noticiar quando liguei a televisão, não peguei bem os detalhes. Deram como suicídio. O que me deixou embatucada foi a corneta. Será que ela pulou tocando a corneta?"
Ele esboçou um gesto de impaciência, coçou rapidamente o cocuruto, sorriu também.
"Se não fosse trágico, eu dava uma risada", disse João. "Você não presta. Pôs o quadro na minha frente. Mas se ela tocou a corneta queria chamar a atenção sobre si, não tem outra. Pode fazer alguma diferença a corneta, se a coitada morreu?"
"Pode", disse Maria. "E não é coisa para o seu bico de intelectual aposentado."
"Professor aposentado", disse João, acusando a farpa. "Sabe que não gosto que me chamem de intelectual. Quanto mais você, que faz isso de sacanagem." Tinha arqueado uma sobrancelha, sentindo-se forte e ridículo. Quando tornou a falar, estava banal como um pijama curto. "Disseram pelo menos onde foi?"
"Na Santo Afonso", disse Maria. "Perto daquele restaurante onde a gente comeu língua com batatas na semana passada. Se eu sair depois do almoço, vou perguntar no restaurante ou na banca de jornais o que eles viram na hora."
"Vai perguntar se ela se atirou tocando a corneta?", disse João.
"Não", disse Maria. "Se eles viram na hora, deve ser o assunto do bairro. O que eu quero mesmo saber é outra coisa."
"Por exemplo...", disse João.
"Isso é comigo", disse Maria.
"Isso é comigo", disse João, irritado, remedando a mulher. "Quase quarenta anos de casados, e você não perde a mania dos segredinhos."
"Já ficou com raiva", disse Maria.
"Com raiva, não", disse João. "Você puxa o assunto, me interrompe no meio do trabalho, me faz esquecer uma palavra boa para o meu artigo, e depois começa a bancar a misteriosa. Tudo bem: não é muito comum uma suicida tocando corneta antes de arrebentar-se numa calçada..."
"Ela caiu sobre a capota de um Gol", disse Maria. "E ainda não sabemos se tocou a corneta."
"Não sabemos?!", disse João. "Você não sabe."
"Mas aposto que vai me aporrinhar para saber depois que eu voltar da rua", disse Maria.
"Acha mesmo?", disse João, subitamente inspirado.
Levantou-se, dirigiu-se à mesinha do telefone e fez a ligação.
Ela olhava atônita para o marido.
E ouviu pedaços de frases desconexas, repletas de sentido: Maneco?, uma vizinha nossa na Santo Afonso, corneta, sim, corneta, um Gol parado lá embaixo, tocando a corneta?, um apito?!, nova, muito nova para essas coisas, apito mesmo?!, valeu, Maneco, nada, nada, um probleminha hermenêutico com a patroa, her-me-nêu-ti-co, não se preocupe com isso, valeu, valeu.
Desligou o telefone, voltou triunfante para o seu lugar na frente do micro e olhou sem expressão para ela.
"Um apito", disse João.
[7.12.2007]
Luiz Guerra, 58, é tradutor, revisor, poeta e cronista. Atualmente prepara uma coletânea de crônicas que terá como título o insinuante "Galho de Arruda", o mesmo do seu sítio na internet.
Há informação de que o escritor Luiz Guerra faleceu em maio de 2009.
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