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terça-feira, 5 de outubro de 2010

O homem que copiava. Jorge Furtado




“É tudo sobre o tempo André, o tempo passando”.


Era sobre o tempo a poesia, e acho que sobre o tempo e sobre a vida é esse filme de Jorge Furtado, sobre um tempo que se esvazia, o homem envelhecendo diante de seus sonhos irrealizados.

“É o jeito de ganhar da morte, de ganhar do tempo, a prole os filhos”.


André arranjou um jeito de ganhar da morte, de ganhar do tempo, de ganhar da vida, melhor seria: de enganar a vida, de enganar a morte, de enganar o tempo.

Tempo esse em que as pessoas estão presas como os bois de Abril Despedaçado, girando em torno de um mesmo eixo. O filme vai romper justamente com o eixo dos personagens, quebrar a seqüência repetitiva e aprisionante de um jovem que trabalha como operador de foto copiadora, que vai de casa pro trabalho, do trabalho pra casa, imerso em sua inércia, apenas sonhando com o futuro.

Jorge Furtado trabalha bem esse eixo do tempo, do “tempo passando” segundo Silvia, as coisas se repetem em volta do André, como quando fala da mãe:

Minha mãe arrasta o chinelo do banheiro para a cozinha. Schlac, schlac, schlac, schlac. Abre o armário, pega um copo, fecha o armário, abre a geladeira, pega a garrafa d'água, fecha a geladeira, enche o copo, não todo, a metade, abre a geladeira, guarda a garrafa, pega o copo, abre o filtro, enche o copo, fecha o filtro, arrasta o chinelo da cozinha pro quarto e diz: "Boa noite, meu filho, eu vou deitar. Televisão me dá um sono."

Existe a construção de uma rotina-cíclica narrada no inicio do filme, uma rotina, que fique claro, que não aprisiona apenas ele, mas que agarra a todos, do dono da papelaria, da mulher dele que sempre passa para pegar dinheiro ou revistas, passando pelo padrasto da Silvia, que sempre fica na poltrona vendo televisão, a própria Silvia, que repete a rotina de chegar todos os dias às 11 horas em casa, passando direto para o quarto.

Pensei no filme de Orson Welles, O Processo, baseado no livro de Kafka, naquele mundo de absurdo que ele constrói, naquele universo tenso e pesado, onde o personagem não dá conta dos acontecimentos. Mas no HOMEM QUE COPIAVA, isso se faz presente apenas no inicio, O Processo vivido por André é o de ser um operador de foto copiadora, sem dinheiro, sem estudo, sem respeito, um cagalhão, que no fim acabaria condenado - a quê? A estar de fora e ver o tempo passar, a ver vida passar, e de ter passado junto, um dia. Como quando ele comenta sobre pessoas que tem síndrome do pânico:

Existem pessoas que não saem na rua nunca. Chama síndrome do pânico. (...). Elas ficam em casa porque não conseguem sair na rua. O problema é que tu acaba ficando velho. Melhor enfrentar a rua.

No filme O Processo, a narrativa é iniciada com um trecho do livro:

Diante da lei, há um guarda.
Um homem vem do interior pedindo para entrar.
Mas o guarda, não pode deixá-lo entrar.
Ele pergunta se pode entrar mais tarde.
“É possível”, diz o guarda.
O homem tenta olhar. Aprendeu que a lei foi feita para todos.
“Não tente entrar sem a minha permissão”, diz o guarda.
“Sou poderoso, apesar de ser o menor dos guardas”.
“A cada sala e porta, cada guarda é mais poderoso que o anterior”.
Com a permissão dada, o homem senta ao lado da porta e espera.
E espera durante anos.
Ele vende tudo o que tem na esperança de subornar o guarda.
Este sempre aceita o que o homem lhe dá, para que o homem não sinta que não tentou.
Fazendo vigília ao longo dos anos, o homem conhece até as pulgas do colarinho do guarda. Ficando gagá com a idade, pede às pulgas que convençam o guarda a deixá-lo entrar.
Sua visão é curta, mas na escuridão, ele percebe o brilho imortal da porta da lei.
E agora antes de morrer, toda sua experiência se concentra em uma pergunta que nunca fez.
Ele chama o guarda, que pergunta o que ele quer.
O homem diz que todos lutam para ter lei. Então por que, em todos aqueles anos, ninguém pediu para entrar?
Sua audição não é boa e o guarda grita em seu ouvido:
“Só você poderia entrar. Ninguém passaria por esta porta. Esta porta foi feita somente para você. Agora eu a fecharei”.


Mas André enfrentará, ele romperá – um acontecimento gerará toda uma série de mudanças na história dele, quando surgem duas opções apenas – continuar ou romper o redemoinho da vida social: o momento em que, no ônibus, diz para Silvia que vai comprar o chambre:

Se não der na Segunda eu passo até o final da semana pra comprar o chambre.
Não sei pra que eu fui dizer uma merda daquela. (...). Agora eu ia ter que conseguir trinta e oito reais e comprar o chambre, ou então esquecer para sempre que a Sílvia existe. Só que eu não tinha trinta e oito reais sobrando assim. Nem tinha onde conseguir, não até o final da semana.

Diferente de Joseph K, que a partir de um acontecimento, perde o controle e cai nas redes de um sistema do qual não conhece nem controla, André sai do sistema, sai do sistema da sua própria vida e rompe o sistema da sociedade – está agora de fora – não sabe onde vai parar, não tem mais a certeza do operador de foto copiadora. O filme também fala de um cotidiano, da riqueza que o cotidiano esconde atrás da rotina, a riqueza da ação.

A expressão corporal de Lázaro Ramos é fundamental para entender quem é o André. Antes – um rapaz cabisbaixo, com olhar raivoso, ombros enrolados, depois – com andar mais decidido, enfrenta quem ele é, suas misérias, dores, e segue. Esse “depois” é quando ele consegue trocar o dinheiro falso na loteria, a construção da cena é organizada para mostrar alguém que alcançou a redenção – a música clássica, a sensação de que ele dominou o mundo ao seu redor, tudo pára, o barulho, o movimento do trânsito, das pessoas – ele parece maior.

A partir daí ele começa a participar da vida, a encarar a rua, a encarar a sociedade.

Quando ele almoça pela primeira vez com Silvia é marcada a posição que ele ocupava: a de observador – com os binóculos, somente olhando a distância, sem participação:

Ela não usa perfume, não é muito de figo, tem nojo de bruxa no feijão e um brilho nos olhos, quando ri. Isso tudo não dá para ver de binóculo.

Outro indicio da ruptura, o que ele quer já não dá mais para ver de binóculos, já não basta, ele já é outro.


Título Original: O Homem que Copiava/ Gênero: Comédia Romântica/ Tempo de Duração: 123 min./ Ano de Lançamento (Brasil): 2002 / Direção e Roteiro: Jorge Furtado/ Produção: Luciana Tomasi e Nota Goulart/ Fotografia: Alex Sernambi/ Desenho de Produção: Marco Baiotto/ Direção de Arte: Fiapo Barth/ Figurino: Rô Cortinhas/ Edição: Giba Assis Brasil.

Elenco: Lázaro Ramos (André)/ Leandra Leal (Sílvia)/ Luana Piovani (Marinês)/ Pedro Cardoso (Cardoso)/ Paulo José (Paulo)/ Júlio Andrade (Feitosa)/ Carlos Cunha (Antunes). 





Soneto número 12 (William Shakespeare - tradução de Ivo Barroso)


Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta, ou que
A prata a preta têmpora assedia;

Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia a sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;

Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandono

Morrem ao ver nascendo a graça nova.
Contra a foice do Tempo é vão combate,
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.


Para quem prefere o original:

When I do count the clock that tells the time,

And see the brave day sunk in hideous night;
When I behold the violet past prime,
And sable curls, all silvered o'er with white;


When lofty trees I see barren of leaves,
Which erst from heat did canopy the herd,
And summer's green all girded up in sheaves,
Borne on the bier with white and bristly beard,

Then of thy beauty do I question make,
That thou among the wastes of time must go,
Since sweets and beauties do themselves forsake

And die as fast as they see others grow;
And nothing 'gainst Time's scythe can make defence
Save breed, to brave him when he takes thee hence.


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