Preciosidades

sábado, 30 de janeiro de 2010

Ver-te / Algo teu. Nelson Coelho de Castro


Foi tão bom te ver, rever-te, ver-te, como antes de rever-te. Nos víamos. Agora, no solitário agora, ver-te verte tudo, com sabor e tudo do primeiro louco ver-te. Foi tão bom te ver, rever-te, ver-te, como antes de rever-te. Nos víamos. Agora, no solitário agora, ver-te verte tudo, com sabor e tudo do primeiro louco ver-te.


No mais, o coração ainda está apaixonado, como apaixonado ainda está o ver-te. E ver-te novamente verte o ver-te igual e necessariamente é preciso sempre ver-te. No mais, o coração ainda está apaixonado como apaixonado ainda está o ver-te. E ver-te novamente verte o ver-te igual e necessariamente é preciso sempre ver-te.

Algo teu
Diz a minha vida como tudo então
De um caminho novo
Ai vou me mandar
Ao fim aonde não sei mais
Eu vou pois me vale o rumo
Que teu coração me dá

Algo teu
Diz a minha vida como tudo então
De um caminho novo
Ai vou me mandar
Ao fim aonde não sei mais
Eu vou pois me vale o rumo
Que teu coração me dá

(Nelson Coelho de Castro – Músico gaúcho. In “Ver-te / Algo teu” letra de música transcrita do aúdio)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Bárbara - Murilo Rubião


O homem que se extraviar do caminho da doutrina, terá por morada a assembléia dos gigantes. (Provérbios, XXI; 16.)

Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava.

Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente. Não os retive todos na memória, preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição. Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho dispensado às coisas que eu lhe dava, ou não engordasse tanto, pouco me teriam importado os sacrifícios que fiz para lhe contentar a mórbida mania.

Quase da mesma idade, fomos companheiros inseparáveis na meninice, namorados, noivos e, um dia, nos casamos. Ou melhor, agora posso confessar que não passamos de simples companheiros.

Enquanto me perdurou a natural inconsequência da infância, não sofri com as suas esquisitices. Bárbara era menina franzina e não fazia mal que adquirisse formas mais amplas. Assim pensando, muito tombo levei, subindo a árvores, onde os olhos ávidos da minha companheira descobriam frutas sem sabor ou ninhos de passarinho. Apanhei também algumas surras de meninos aos quais era obrigado agredir unicamente para realizar um desejo de Bárbara. E se retornava com o rosto ferido, maior se lhe tornava o contentamento. Segurava-me a cabeça entre as mãos e sentia-se feliz em acariciar-me a face intumescida, como se as equimoses fossem um presente que eu lhe tivesse dado.

Às vezes relutava em aquiescer às suas exigências, vendo-a engordar incessantemente. Entretanto, não durava muito a minha indecisão. Vencia-me a insistência do seu olhar, que trasformava os mais insignificantes pedidos numa ordem formal. (Que ternura lhe vinha aos olhos, que ar convincente o dela ao me fazer tão extravagantes solicitações!)

Houve tempo - sim, houve - em que me fiz duro e ameacei abandoná-la ao primeiro pedido que recebesse.

Até certo ponto, minha advertência produziu o efeito desejado. Bárbara se refugiou num mutismo agressivo e se recusava a comer ou conversar comigo. Fugia à minha presença, escondendo-se no quintal e contaminava o ambiente com uma tristeza que me angustiava. Definhava-lhe o corpo, enquanto lhe crescia assustadoramente o ventre.

Desconfiado de que a ausência de pedidos em minha mulher poderia favorecer uma nova espécie de fenômeno, apavorei-me. O médico me tranquilizou. Aquela barriga imensa prenunciava apenas um filho.

Ingênuas esperanças fizeram-me acreditar que o nascimento da criança eliminasse de vez as estranhas manias de Bárbara. E suspeitando que a sua magreza e palidez fossem prenúncio de grave moléstia, tive medo que, adoecendo, lhe morresse o filho no ventre. Antes que tal acontecesse, lhe implorei que pedisse algo. Pediu o oceano.

Não fiz nenhuma objeção e embarquei no mesmo dia, iniciando longa viagem ao litoral. Mas, frente ao mar, atemorizei-me com o seu tamanho. Tive receio de que a minha esposa viesse a engordar em proporção ao pedido, e lhe trouxe somente uma pequena garrafa contendo água do oceano.

No regresso, quis desculpar meu procedimento, porém ela não me prestou atenção. Sofregamente, tomou-me o vidro das mãos e ficou a olhar, maravilhada, o líquido que ele continha. Não mais o largou. Dormia com a garrafinha entre os braços e, quando acordada, colocava-o contra a luz, provava um pouco da água. Entrementes, engordava.

Momentaneamente despreocupei-me da exagerada gordura de Bárbara. As minhas apreensões voltavam-se agora para o seu ventre a dilatar-se de forma assustadora. A tal extremo se lhe dilatou que, apesar da compacta massa de banha que lhe cobria o corpo, ela ficava escondida por trás de colossal barriga. Receoso de que dali saísse um gigante, imaginava como seria terrível viver ao lado de uma mulher gordíssima e um filho monstruoso, que poderia ainda herdar da mãe a obsessão de pedir as coisas.

Para meu desapontamento, nasceu um ser raquítico e feio, pesando um quilo.

Desde os primeiros instantes, Bárbara o repeliu. Não por ser miúdo e disforme, mas apenas por não o ter encomendado. A insensibilidade da mãe, indiferente ao pranto e à fome do menino, obrigou-me a criá-lo no colo. Enquanto ele chorava por alimento, ela se negava a entregar-lhe os seios volumosos, e cheios de leite.

Quando Bárbara se cansou da água do mar, pediu-me um baobá, plantado no terreno ao lado do nosso. De madrugada, após certificar-me de que o garoto dormia tranquilamente, pulei o muro divisório com o quintal do vizinho e arranquei um galho da árvore. Ao regressar a casa, não esperei que amanhecesse par entregar o presente à minha mulher. Acordei-a, chamando baixinho pelo seu nome. Abriu os olhos, sorridente, adivinhando o motivo por que fora acordada:
- Onde está?
- Aqui. E lhe exibi a mão, que trazia oculta nas costas.
- Idiota! Gritou, cuspindo no meu rosto. - Não lhe pedi um galho - E virou para o canto, sem me dar tempo de explicar que o baobá era demasiado frondoso, medindo cerca de dez metros de altura.

Dias depois, como o dono do imóvel recusava-se vender a árvore separadamente, tive que adquirir toda a propriedade por um preço exorbitante.

Fechado o negócio, contratei o serviço de alguns homens que, munidos de picaretas e de um guindaste, arrancaram o baobá do solo e o estenderam no chão.

Feliz e saltitante, lembrando uma colegial, Bárbara passava as horas passeando sobre o grosso tronco. Nele também desenhava figuras, escrevia nomes. Encontrei o meu debaixo de um coração, o que muito me comoveu. Este foi, no entanto, o único gesto de carinho que dela recebi. Alheia à gratidão com que eu recebera a sua lembrança, assistiu ao murchar das folhas e, ao ver seco o baobá, desinteressou-se dele.

Estava terrivelmente gorda. Tentei afastá-la da obsessão, levando-a ao cinema, aos campos de futebol. (O menino tinha que ser carregado nos braços, pois anos após o seu nascimento continuava do mesmo tamanho, sem crescer uma polegada.) A primeira idéia que lhe ocorria, nessas ocasiões, era pedir a máquina de projeção ou a bola, com a qual se entretinham os jogadores. Fazia-me interromper, sob o protesto dos assistentes, a sessão ou a partida, a fim de lhe satisfazer a vontade.

Muito tarde verifiquei a inutilidade dos meus esforços para modificar o comportamento de Bárbara. Jamais compreenderia o meu amor e engordaria sempre.

Deixei que agisse como bem entendesse e aguardei resignadamente novos pedidos. Seriam os últimos. Já gastara uma fortuna com as suas excentricidades.

Afetuosamente, chegou-se para mim, uma tarde, e me alisou os cabelos.

Apanhado de surpresa, não atinei de imediato com o motivo do seu procedimento. Ela mesma se encarregou de mostrar a razão:
- Seria tão feliz, se possuísse um navio!
- Mas ficaremos pobres, querida. Não teremos com que comprar alimentos e o garoto morrerá de fome.
- Não importa o garoto, teremos um navio, que é a coisa mais bonita do mundo.

Irritado, não pude achar graça nas suas palavras. Como poderia saber da beleza de um barco, se nunca tinha visto um e se conhecia o mar somente através de uma garrafa?!

Contive a raiva e novamente embarquei para o litoral. Dentre os transatlânticos ancorados no porto, escolhi o maior. Mandei que o desmontassem e o fiz transportar à nossa cidade.

Voltava desolado. No último carro de uma das numerosas composições que conduziam partes do navio, meu filho olhava-me inquieto, procurando compreender a razão de tantos e inúteis apitos de trem.

Bárbara, avisada por telegrama, esperava-nos na gare da estação. Recebeu-nos alegremente e até dirigiu um gracejo ao pequeno.

Numa área extensa, formada por vários lotes, Bárbara acompanhou os menores detalhes da montagem da nave. Eu permaneci sentado no chão, aborrecido e triste. Ora olhava o menino, que talvez nunca chegasse a caminhar com as suas perninhas, ora o corpo de minha mulher que, de tão gordo, vários homens, dando as mãos, uns aos outros, não conseguiriam abraçá-lo.

Montado o barco, ela se transferiu para lá e não mais desceu à terra. Passava os dias e as noites no convés, inteiramente abstraída de tudo que não se relacionasse com a nau.

O dinheiro escasso, desde a compra do navio, logo se esgotou. Veio a fome, o guri esperneava, rolava na relva, enchia a boca de terra. Já não me tocava tanto o choro de meu filho. Trazia os olhos dirigidos para minha esposa, esperando que emagrecesse à falta de alimentação.

Não emagreceu. Pelo contrário, adquiriu mais algumas dezenas de quilos. A sua excessiva obesidade não lhe permitia entrar nos beliches e os seus passeios se limitavam ao tombadilho, onde se locomovia com dificuldade.

Eu ficava junto ao menino e, se conseguia burlar a vigilância de minha mulher, roubava pedaços de madeira ou ferro do transatlântico e trocava-os por alimento.

Vi Bárbara, uma noite, olhando fixamente o céu. Quando descobri que dirigia os olhos para a lua, larguei o garoto no chão e subi depressa até o lugar em que ela se encontrava. Procurei, com os melhores argumentos, desviar-lhe a atenção. Em seguida, percebendo a inutilidade das minhas palavras, tentei puxá-la pelos braços. Também não adiantou. O seu corpo era pesado demais para que eu conseguisse arrastá-lo.

Desorientado, sem saber como proceder, encostei-me à amurada. Não lhe vira antes tão grave o rosto, tão fixo o olhar. Aquele seria o derradeiro pedido. Esperei que o fizesse. Ninguém mais a conteria.

Mas, ao cabo de alguns minutos, respirei aliviado. Não pediu a lua, porém uma minúscula estrela, quase invisível a seu lado. Fui buscá-la.

P.S.: Conto extraído do livro “O pirotécnico Zacarias”, de Murilo Rubião, 1974. Editora Ática.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A aldeia que esqueceu da primavera. Valdemir Klamt


Nasce o sol amarelo.

Diante dos olhos quase nada acontece.
O feno é ceifado.
A aldeia acorda tímida.

Os olhos alegres dos meninos
brincam de bolinha de gude.

Fenece a lua azul.

Diante dos olhos quase nada acontece.
O gado é recolhido,
o povo se esconde atrás da janela.

A aldeia acorda e dorme.
O povo vem e vai.
Diante dos olhos quase nada acontece.

O louco com sua rosa de plástico
anuncia a vinda da primavera.


Poema extraído do livro "Pequeno gafanhoto biografado", de Valdemir Klamt, de 2002, Editora Escrituras.

Mais sobre o autor:
http://www.poetasnosingular.com.br/page_poeta_valdemir.html

sábado, 23 de janeiro de 2010

O caminho de Santiago. Zé Urbano

(...)

Acordei no hospital,

levantei da floresta,

levantei da cozinha, almocei com o elefante,

troquei a harpa, levantei da bandeja,

levantei da lagoa levantei a Hebe

atropelei a criança levantei do prédio

levantei do banco saí do hospital

acordei o elefante lhe dei uma banana

comi a bandeja roubei a criança lavei a colher

dormi na cama subi no prédio desci da nuvem

chutei a chaleira salvei as baleias tomei limonada

votei no elefante rezei com a enfermeira liguei o gás

e saí correndo.


P.S.: última estrofe do poema "O caminho de Santiago", extraído do livro de Zé Urbano, pseudônimo de Gustavo Jobim: "ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ". Sim! É este mesmo o nome do livro. Ibis Libris, 2009. Um pouco mais sobre o escritor, acesse:

http://www.fotolog.com.br/zeurbano

http://zeurbano.blogspot.com/

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Quer ficar esperto? Leia um livro que não faz sentido.


Psicólogos americanos pediram a voluntários que lessem “Um Médico Rural”, de Franz Kafka – um conto surrealista, com algumas passagens aparentemente sem sentido. Outro grupo leu uma versão reescrita do livro, que fazia sentido. Depois, todo mundo fez uma prova de gramática – e quem tinha lido a versão sem pé nem cabeça se saiu melhor. Possível explicação: o nonsense motiva o cérebro, que fica mais alerta. (fonte: Revista Superinteressante, seção Supernovas, Ciência Maluca, p. 28)

http://www.submarino.com.br/produto/1/64883/medico+rural:+pequenas+narrativas,+um

P.S.: Ler de tudo, inclusive o "nonsense".

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Hélio Leites


"Humilhação komo essa que estou tendo agora eskrevendo nessa velha máquina kompanheira banespiana komprada num desmanxe que o banko fez um dia. talvez por isso meu apego a ela e a repulsa ao komputador. De vez em quando ela aparece kom uma moda nova antes era o "n" deskolado e agora o C que esta me dando trabai entchul degung (desculpe em alemão). A melhor espress~ao da verdade é ela própria. Mas não é importante. O lugar onde se nasse não importa. importa é o pensamento. geografia. etmologia boto tudo isso num sako, e aí fiko livre desse ranço. Quem quizer que mexa no sako.

hl e sua origem."

Texto do poeta e artista multiperformático Hélio Leites. Transcrito "ipse literis" do livro "Pequenas Grandezas, miniaturas de Hélio Leites", de Rita de Cássia Baduy Pires. Artes e Textos, 2008.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Máquina do tempo. César Miranda


O fabricante de máquina do tempo acabou de receber umas encomendas. Todas para ontem. E já entregou, pois um fabricante de máquinas do tempo nunca atrasa suas encomendas. Aliás, desde que se inventou tal engenho, a metáfora para toda inabilidade é “ser fabricante de máquina do tempo e atrasar a entrega”. O cliente chega e diz: “seu Tonico, eu quero uma máquina do tempo para ontem, pode ser?”. O velhinho, ajeita os óculos e responde com cara cética: “uai, Zé, sua memória tá ruim, hein? Eu já lhe entreguei, sô!” O cliente dá um tabefe na própria cabeça para ver se com a sacudida, a mente se atualiza e toma consciência do passado e do presente modificado graças a sua ida ali pedir a fabricação da máquina e recorda que realmente, a máquina tinha sido entregue no dia anterior. E seu Tonico acrescenta: “agora, só falta me pagar, seu desmemoriado ou não fabrico mais máquina nenhuma procê”. Ninguém dá calote em um fabricante de máquina do tempo, pois ele pode voltar ao ontem ou deixar de ir ao depois de amanhã e não entregar a encomenda. Certa vez, um cliente pediu uma máquina e seu Tonico respondeu de pronto: “faço nada, cê num vai me pagar, sai daqui seu caloteiro”. “Mas seu Tonico, é a primeira vez que venho pedir seu serviço”. “É a primeira vez mesmo, você vai me pedir uma pro mês passado, eu vou fazer, e sei que fiz porque já entreguei no mês passado e até hoje ocê tá me devendo, seu vagabundo, sai de minha oficina, fiquei no prejuízo, seu safado, só me apareça aqui com dinheiro...”. Desde então, seu Tonico só faz máquina para entregar no passado se o pagamento for feito no momento do pedido. Antes, ele fazia para receber o pagamento na entrega, mas viu que quando a encomenda era para o passado, isso não funcionava bem. Porém, para entregar no futuro, ele cobra a metade no ato da compra e divide em até três vezes e quando o cliente pergunta como anda a fabricação da encomenda que será entregue no futuro, Tonico responde: “acabei de entregar procê, voltei do ano que vem indagorinha”.

Se quiser mais, veja http://protensao.apostos.com

Texto repassado por e-mail. Um presentaço.