Preciosidades

domingo, 11 de abril de 2010

Calda de Açúcar. Otávio Augusto Martinez


Após a visita de Dr. Jenkins e do delicado chá de jasmim, tudo muda, o silêncio ensurdece. Ao retirar-se, todas juram que a cauda de seu jaleco torna-se um cortejo de anjos prematuros envolvidos em baba. Ou seria calda de açúcar?

É justamente nesse momento, quando o sol se põe e então sua luminosidade infernal estoura pelos vidros baços da ala leste de St. Pancras, que se revela alguma verdade sobre cada uma delas. Ao caminhar pelos corredores de brancura cirúrgica, as faces são divididas: a metade oriental é avermelhada, e a ocidental, jaz em trevas; essa hora dá às ilustres transeuntes da ala psiquiátrica uma certa verdade, um brio, uma aura mística, as coloca no mundo exatamente a elas devido. O Surreal.

Espanta-me, por exemplo, o caso de Mrs. Huntington e suas companheiras de cela. Lá fica ela, a expelir involuntariamente um filete de baba pelo canto da boca, vivendo um eterno desvão na história, com aquele brilho de vidro nos olhos estatelados a espelhar tudo ao redor, sentada à beira da janela, com a cabeça pendida e um bloco de notas quase em branco na mão, como se fosse personagem de um quadro de Hopper; espasmos lhe ocorrem ao fim do dia, seguem-se os gritos grotescos, porém, Dr. Jenkins, preciso e frio, como sempre, lhe devolve o silêncio como dádiva. Santo Homem aquele, e nem tem espada, nem nada.

Divide os aposentos com Mrs. Huntington, a bela jovem Rosamond que, se não fosse a tendência à auto-extirpação de órgãos, encantaria qualquer homem do mundo com seus traços delicados, gélidos e, principalmente, pelo fato de já não possuir uma língua na cavidade bucal.

Elizabeth é a terceira. Sempre a sorrir. Relata em longas missivas os substratos de sua experiência de imersão num mundo gasoso, dado o excesso de sinestesias que vive, tanto as da psique, como as que literalmente materializa... A pirocinese da moça psicótica faria o queixo de Rimbaud cair.

Quando a noite cai, as três deitadas sob seus leitos alvos mantêm-se olhando para o teto. Rosamond pensa nos poemas não escritos pela velha; a velha... A velha quase não pensa, e quando o faz, escreve, com tamanha simplicidade e objetividade.

“Como é aprazível a ausência de substantivos e adjetivos que enchem de solenidade e rococós aquilo que é vazio e prosaico por natureza. Prefiro aquelas palavras simples, cotidianas, sem apelos... Receitas de bolo com calda de açúcar! Nada mais. Nada de lirismo, nada de retórica, nada de encantos literários tão efêmeros como os de Elizabeth. Tudo isso é uma grande demagogia. O que, no fundo, estes poetas e prosadores buscam é o afeto e o reconhecimento” – Pensa Rosamond. Já Elizabeth... A essas alturas, mesmo sem dormir, sonha.

Todas manhãs, as duas moças passam por Mrs. Huntington, e em seus olhos se vêem refletidas; e com elas, o mundo. Naqueles olhos matutinos sempre há uma inquietação que se avulta vagarosamente com o passar das horas do dia, o mesmo acontece com as outras: Rosamond passa a sentir a necessidade incontrolável de reduzir-se. A ladeira rumo a lugar-nenhum é seu caminho, alcançar o grau zero é imperativo ético de sua estética para tudo. Os sonhos de Elizabeth tornam-se pesadelos, o orgasmo incendiário se torna iminente e o desespero a domina. Mrs. Huntington, já sinalizando alguns espasmos, passa a emitir grunhidos...

O clamor constante de ondulação hipnótica torna-se um mantra; gemidos, como miados fracos, indefesos, desalentados e aterrorizados... Gemidos... Miados, chorosos... Indefesas mulheres... Aterrorizados gemidos... Mulheres chorosas... Indefesas... Miados... Desalentadas lágrimas... Até, vertiginosamente alcançar os berros grotescos de Mrs. Huntington...

Pela lateral, ouve-se o salto do sapato tocando o solo e emitindo seu som surdo, seguido pelo atrito da sola que agora parece estilhaça-lo vagarosamente. Numa cadência continua, porém espaçada. É a marcha que antecede o epílogo de um dia na vida destas mulheres.

Dr. Jenkins, fabiano por excelência, com um ar cínico, diz se aproximando: “É coisa de poeta babão esse papo de que, na loucura, achega-se a verdade. Que verdade? Mostra tua verdade, Mrs. Huntington...”

Aos poucos, a paz sintética volta a reinar nas paredes brancas e nas faces parcialmente avermelhadas. Ouve-se Elizabeth suspirar profundamente, além do tilintar das xícaras, já ao longe...

Após a visita de Dr. Jenkins e do delicado chá de jasmim, tudo muda, o silêncio ensurdece. Ao retirar-se, todas juram que a cauda de seu jaleco torna-se um cortejo de anjos prematuros envolvidos em baba... Ou seria calda de açúcar?

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Otávio Augusto Martinez
Fim do verão de 2007
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www.ocontistacronico.blogspot.com

Otto M

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