Preciosidades

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Millôr por ele mesmo.



Exigiu-me a audaciosa editora que antecedesse ao corpo do livro um prefácio, escrito por mim mesmo, o autor. Pois é, O Mundo Visto Daqui. De onde? Perguntareis. (Pergunta retórica; leitor não pergunta nada, leitor lê.) Respondo assim mesmo. Respondo a mim mesmo, pois. Da janela desta minha cobertura (modesta, esclareço, apenas 650 metros cúbicos) sobre a Praça General Osório, nas fímbrias de Ipanema, de onde contemplo o dia e contemplo esse mundo. Daqui, sim, atento e intimidado.
Nasci há — pra que dizer quando se já não me conto em unidades, me conto em décadas? — muito, no Meyer, imponente subúrbio (sub urbe) do Rio de Janeiro, antiga cidade brasileira hoje desaparecida.
Sou Milton Viola Fernandes, terceiro dos quatro fiIhos do casal Francisco — Don Paquito, espanhol naturalizado brasileiro, engenheiro de formação — e Maria Viola Fernandes, do lar. Ou dólar, na época mais ou menos 100.000 réis. Só fui registrado um ano depois de nascido, quando o casal se certificou de que eu era de verdade, existia!, e descobriu meu nome, Millôr.
Na segunda década de minha vida comecei a viajar, fui aqui e ali, do Oaipoque ao Chuí — rima fácil. Passei por Israel, recém-tirado da cartola da fábula étnicogeográfica internacional, onde me fiz batizar no Rio Jordão, que ainda estava lá. Passei por Egito, Grécia, Europa, França e Bahia e, imprudentemente, até pelos Estados Unidos, Hollywood dos anos dourados, onde fui me encontrar com meu amigo, o cônsul Vinicius de Moraes, com o cientista César Lattes e minha amiga, a portuguesa Carmem, La Miranda. Então cansei, vi que o mundo não valia o meu lar. E sentei praça nesta mesma praça, aqui em ipanema, neste mesmo lugar de onde vos teclo. Os edifícios tinham quatro andares, hoje têm 80. A praça era cheia de árvores, com bastante frescor e espaço pra prescrutar detalhadamente as minas — então brotos — que passavam, já rebolantes. Havia um ponto de bondes (ferro-carris, não mais puxados a burro, já elétricos!) onde hoje há uma estação de metrô, a feiura em estado puro.
E, a mais ou menos um quilômetro de distância, do outro lado da praça, do alto de sua Cobertura Agrária, um dos maiores escritores deste país, uma de suas maiores personalidades, o ser humano Rubem Braga, todas as manhãs dialogava comigo por sinais semafóricos. Como sói, tudo foi encoberto pelo ó tempora! E chega, senão o prefácio fica longo demais, deixa de sê-lo.
Perdoem pois o prefácio e o livro. Herrar é umano.
(Fonte: Playboy de Março de 2010)

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