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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Entrevista com o escritor Cláudio Cruz.


Escritor Claudio Cruz

"O professor da UFSC Cláudio Celso Alano Cruz é doutor em literatura brasileira e faz pesquisas na área de Literatura e Memória e Teoria da Modernidade. Nesta entrevista, ele fala sobre seus estudos na poesia de Evaristo Carriego e sobre o lançamento do livro Poesia herege:

Num trabalho de tradução, uma das dificuldades é a escolha das palavras exatas que darão o mesmo sentido que o autor pretendia. Em Poesia herege, como foi o trabalho e qual as dificuldades ?

Para a concepção moderna de tradução não existe a menor possibilidade da “palavra exata”, mais ainda em se tratando de poesia, que utiliza recursos como metrificação, rimas etc... Sem contar o ritmo, fundamental, por definição, em qualquer tipo de poesia. Além disso, hoje se sabe que o problema da tradução não se restringe apenas ao fator linguístico puro, mas existe num âmbito cultural mais amplo. Em termos simples, quem traduz não traduz apenas de uma língua para outra, mas de uma cultura para outra, ou seja, junto com o texto vem – deve vir – o contexto.

Assim, além das dificuldades normais que todo tradutor de poesia deve enfrentar, ou seja, de manter na língua de chegada a maior parte dos recursos formais utilizados pelo poeta na língua de partida, foi necessário transportar para o leitor brasileiro toda aquela atmosfera tão própria da Buenos Aires em torno de 1900, em especial do bairro de Palermo, que Carriego estabeleceu como sua referência fundamental Carriego. Lá residiu a maior parte de sua curta vida, sempre na mesma residência da rua Honduras, que hoje sedia a Casa de Evaristo Carriego.

Pois bem, esse bairro era muito, mas muito diferente do atual e cosmopolita bairro de Palermo, hoje totalmente fashion. Pelo contrário, tratava-se de uma zona periférica da cidade, de gente em sua maioria pobre, constituindo um dos mais tradicionais arrabaldes portenhos, lugares onde, segundo muitos historiadores, nasceu o tango.

Carriego foi, como dizia Borges, o “inventor” desse espaço, o que primeiro lhe deu vida e estatuto literário e artístico. Daí a sua importância não só para a cultura argentina mas para toda a cultura das Américas. Com o tempo, e muito em função do tango, esse espaço do arrabal portenho veio a se constituir como um dos seus mais importantes espaços míticos, só igualado por alguns poucos como o “velho oeste norte-americano” e o “sertão brasileiro”.

Embora não possa me considerar um especialista desse ambiente portenho, o ano que passei em Buenos Aires quando do meu pós-doutoramento, foi fundamental para encarar essa empreitada de traduzir Carriego. Seja como for, com mais ou menos conhecimento da língua e da cultura que se quer traduzir, sempre encontramos termos e expressões que resistem a uma tradução, já que fazem parte de maneira muito profunda e única àquele espaço cultural.


Só para dar um exemplo, lembro a palavra compadrito, que em geral traduzimos por valentão, o que está longe de cobrir toda a gama de significados que a palavra detém naquele espaço e, principalmente, naquela época. Sem dúvida que o compadrito, figura central do arrabal portenho, necessita ser valente, mas essa é apenas uma das muitas características que o compõem.

E nem todos são “valentões” no sentido que damos para a palavra em português. Aliás, os mais famosos, aqueles que incendiavam a imaginação de Borges e de muitos outros criadores, preferiam não brigar, salvo se encontrassem pela frente um rival que considerassem a sua altura. Daí passava a valer a pena.

De onde surgiu a idéia de traduzir Evaristo Carriego?

O escritor Ítalo Calvino dizia que a melhor forma de ler um texto é traduzi-lo. Não sei se é a melhor, mas seguramente é uma das melhores. Isso porque com a tradução devemos estabelecer, necessariamente, uma aproximação e um cuidado com o texto que normalmente não teríamos.

Tudo isso pra dizer que o motivo pelo qual eu resolvi traduzir Carriego foi, provavelmente, a vontade de conhecer sua poesia melhor, mais intimamente. Um segundo motivo foi o desejo de vê-lo inserido na cultura brasileira de uma forma mais independente de Borges. Devemos ao autor de Ficciones o conhecimento de Carriego fora da Argentina, principalmente porque Borges dedicou a ele nada mais nada menos do que um livro inteiro que, aliás, se chama Evaristo Carriego, publicado em 1930.

Esse livro, mesmo considerando-se uma obra tão cheia de grandes textos como é a de Borges, mereceria ter mais destaque. Mesmo na Argentina ele parece não ser levado na devida conta, embora nos últimos anos isso possa estar mudando, já que cresce o interesse pela primeira fase de Borges, aquela que se desenvolve ao longo da década de 1920. E que terá o seu ápice, podemos dizer, nessa sua biografia sobre Carriego, publicada justamente em 1930, encerrando a fase que muitos chamam de “juvenil”. Nem tão juvenil assim, já que Borges nasceu em 1899.

Mas sem dúvida que encerra todo um período de buscas e inquietações por parte daquele jovem escritor que, mesmo sem deixar de ser cosmopolita, como sempre foi, dada a sua formação familiar, valorizava muito, nessa época, o que hoje chamamos de “local”, mas que então respondia mais pela palavra “nacional”. Como se sabe, posteriormente, Borges mudará muito em relação a essa perspectiva primeira adotada por ele, mas a verdade é que nunca a abandonará de todo.

Os temas locais, nacionais, o acompanharão por toda a sua vida, mesmo naquelas fases em que a Europa, como dizemos no Brasil, se curvou ante sua obra e ele, gostosamente, passou a defender valores mais cosmopolitas. Traduzir Carriego faz parte de um projeto que busca revalorizar a obra inicial de Borges, esse Borges criollo, para lembrar o livro de Beatriz Sarlo, crítica argentina que, acredito, abriu toda essa vertente investigativa. Mas a minha intenção vai um pouco além, pretendendo trazer para o Brasil um Carriego mais independente do próprio Borges.

Como disse antes, a ele devemos o conhecimento de Carriego fora da Argentina, mas por outro lado acredito que esse “cantor do arrabalde portenho”, como ficou conhecido, merece ser conhecido por sua própria poesia – que é muito vigorosa em seus melhores momentos – independente do uso que dela fez o seu genial conterrâneo.

O autor, embora não seja muito conhecido no Brasil, na Argentina qual é o espaço que ele ocupa?

A posição que ele ocupa na Argentina é sui generis. Por um lado, quer dizer, pela chamada academia, a universidade, ele hoje é visto apenas como um poeta que detém uma importância do ponto de vista histórico, aquele apontado por Borges, de ter sido um inventor de um espaço social que até o seu aparecimento nas letras argentinas não tinha a sua voz.

Neste sentido ele é quase, ou totalmente, uma unanimidade. No entanto, essa mesma academia não o considera um poeta de primeira ordem, quer dizer, não seria um poeta atual, para ser lido e estudado hoje pelos seus valores intrínsecos, quer dizer, propriamente poéticos. Ou seja, consideram-no, em geral, um poeta menor. Ocorre que a realidade, se considerarmos a trajetória de sua poesia ao longo do século XX, contraria frontalmente essa perspectiva, remetendo o seu “caso” para o que hoje se chama de estudos da “recepção”.

Ou seja, uma coisa é o que as chamadas instâncias legitimadoras do literário (universidade, crítica, escolas etc...) dizem a respeito de uma obra, de um autor, outra é a presença dessa obra, desse autor, no corpo social, na cultura como um todo. E neste sentido Carriego foi um dos poetas mais vivos na Argentina, durante muito tempo, e por vários motivos. Saliento apenas dois.

Em primeiro lugar, ao contrário de alguns poetas de sua geração, tidos como “clássicos”, as edições de Carriego se sucederam, de forma regular, ao longo de todo o século XX. Ou seja, tudo leva a crer que foi um poeta efetivamente lido, num século em que, como se sabe, a poesia não parou de perder espaço no dia-a-dia das pessoas. O século termina com uma edição pela Corregidor, tradicional e respeitada editora argentina, da obra completa de Carriego, reunindo, além de suas duas obras poéticas, alguns contos, peças teatrais e poesias esparsas, juntamnte com uma seleção de comentários e críticas sobre a obra, fotos, gravuras, memórias familiares etc...

Também toda um série de informações sobre o processo de transformação da residência onde morou em Casa Evaristo Carriego. Nessa primeira década do século atual percebe-se uma certa queda no movimento editorial em torno a Carriego, mas evidentemente isso não diz respeito propriamente ao poeta, mas à cultura argentina em geral. A década começa com o pior momento da história Argentina nos últimos cem anos e, mesmo levando-se em conta a recuperação que se seguiu, é notório que a Argentina nunca mais foi a mesma, e eles são os primeiros a perceber isso.

O verdadeiro “banho de água fria” que caiu, e vem caindo, sobre as comemorações do Bi-Centenário da Independência é uma prova cabal disso. Quem, como eu, estudou o período em que a Argentina comemorou o seu primeiro Centenário, em 1910, percebe a enorme diferença entre essa data e a de agora. Sem dúvida nenhuma que 1910 foi o ápice da história Argentina, que chegou a ocupar um lugar “quase” ao lado das grandes potências da época, Inglaterra e França. Pelo menos os argentinos em geral pareciam convictos disso. Do ponto de vista cultural, Borges foi o mais alto fruto dessa época realmente esplendorosa do país vizinho, apesar de todas as ilusões que a acompanhavam, e que parecem estar cobrando a conta até agora, ou principalmente agora.

O lançamento original de Poesia herege é datado de 1908, e pouco antes após sua morte precoce. O lançamento em português se deu em homenagem aos 100 anos de sua morte? Situar seu trabalho a um realismo sentimental, pouco lembrado hoje em dia, é correto, ou Carriego é mais amplo em suas poesias?

Sim, do ponto de vista estritamente editorial, o projeto de tradução foi apresentado à editora da UFSC em 2007, no intuito de homenageá-lo no centenário de sua única obra publicada em vida, o livro Misas herejes. Motivos que não vêm aqui ao caso discutir não permitiram que a publicação saísse no devido tempo. Seja como for, inadvertidamente, acabou chegando a tempo das comemorações do citado bi-centenário.

O primeiro centenário Carriego chegou a acompanhar ainda em vida, já que faleceu em 1912. Sem dúvida que Misas herejes é uma obra muito representativa desse momento da história da cultura argentina. Quanto ao título adotado por nós, Poesia hereje, foi uma idéia vinda da editora da UFSC, e que eu achei bem interessante, embora inicialmente eu temesse o risco que corríamos de parecer “propaganda enganosa”, já que não estávamos traduzindo todos os poemas do livro, mas apenas uma parcela deles, reunidos a alguns outros do segundo livro.

Mas vencido esse temor, percebi que, além de servir como uma espécie de homenagem àquela edição – aliás seguida do ponto de vista gráfico – do poeta, servia também para configurar o tipo de poesia feita por Carriego nestes tempos ditos pós-modernos.

Ou seja, poemas que falam da vida cotidiana, do dia-a-dia, daquilo que Antonio Candido costuma chamar de “vida ao rés-do-chão”, uma preocupação em representar as pessoas e suas relações, em poemas que constituem, reunidos, quase que uma peça teatral, a visão afetiva e sentimental da vida, enfim, tudo isso que vivemos na maior parte de nossas vidas e que a arte contemporânea, em grande parte, teima em desconsiderar, tudo isso faz com que a perspectiva lírica adotada por Carriego, que é exatamente esta, de um realismo sentimental, fique parecendo uma verdadeira heresia.


O curioso é que o sentido buscado por Carriego na época não tinha nada a ver com isso, e muito mais com um sentido baudelaireano, do então muito presente satanismo baudelaireano, que ainda encantava os poetas de então. E quanto à definição de realismo sentimental, que a princípio é correta, temos que tomar cuidado para não desfigurar o verdadeiro sentido da poesia de Carriego.

O sentimental nesse poeta, desde sempre, esteve sujeito a mal entendidos, que o rigoroso instrumental desenvolvido pela crítica ao longo do século XX pode ajudar a esclarecer. Carriego não era sentimental, no sentido em que utilizamos a palavra no português corrente, e sim muitos de seus personagens, como aliás costumam ser os latinos em geral. Mas isso só se percebe com um instrumental crítico mais refinado, disponível hoje.

Há pouco tempo escrevi para uma revista da USP um artigo comparando a poesia de Carriego com a do poeta português Cesário Verde, o que não deixa de ter um certo ar de heresia, já que Cesário é tido, hoje, como um cânone dos cânones da literatura moderna na área íbero-americana. Mas não me interessou compará-los nesse sentido, pouco me importando saber qual deles é poeta maior ou menor. Essas definições hoje soam no mínimo estranhas, num momento em que todos os valores, ou melhor, todas as medidas de valores estão sendo, com razão, questionadas.

O que me interessava era ver como os dois trabalhavam nesse registro ou nesse estilo realmente pouco utilizado, em geral, pelos poetas líricos, ou seja, o que se convencionou chamar de “realismo”, de buscar representar o “real”, no sentido da vida de todos os dias, em grande parte seguindo mesmo a escola que ficou justamente conhecida como Realismo, assim, com maiúscula, e que surge e se estabelece, principalmente, no final do século XIX.

Como foi a amizade de Evaristo com Jorge Luis Borges, e em que um influenciou o outro?

É preciso deixar claro uma coisa: Borges não influenciou em nada a Carriego, até porque quando ele morre Borges tinha 12 anos. Ele foi, na verdade, amigo do pai de Borges, e um pouco da família Borges, ainda que a mãe não simpatizasse muito com o autor de Misas herejes. Alguns falam que Carriego é uma “invenção” de Borges. Isso me parece levemente ridículo, é confundir personagem com pessoa real. Sem dúvida que Borges inventa um Carriego, principalmente no livro Evaristo Carriego. Mas como toda operação borgiana, ele o inventa para seu uso próprio.

Eu, particularmente, gosto dos dois Carriegos. Mas acho mais rico o Carriego real, pelo menos num sentido. Ele foi o criador literário desse símbolo tão forte que é o arrabal portenho, com uma variada e rica gama de personagens, e não só aquele que ficou conhecido como o compadrito, motivo de especial atenção, na verdade única, de Borges em relação à poesia de Carriego.

O compadrito borgiano é uma figura fascinante, sem dúvida, ao qual tenho me dedicado a pesquisar mais ou menos regularmente há cerca de cinco ou seis anos, tendo sido a ponte, aliás, que me levou a Carriego. Neste sentido, sim, Borges inventou Carriego, no sentido de que hoje, fora da Argentina, é bastante difícil que alguém chegue ao autor de Misas herejes senão pelas mãos de Borges. A não ser pela via do tango, já que nessa área Carriego é bastante considerado, como já falei acima.

Mas eu acho que há espaço ainda para um terceiro Carriego, independente do tango, independente do Borges, um poeta lírico que soube olhar a vida com um olhar singular, e que conseguiu transpor essa visão singular da vida e das pessoas para uma linguagem única e original. Quer me parecer que há coisas ainda a serem descobertas em Carriego, e é por isso que me dedico atualmente a estudá-lo e a traduzi-lo.

Ele é um caso único, um pioneiro, o primeiro a se preocupar com aquelas zonas suburbanas que estavam começando a nascer na América, uma espécie de Lima Barreto da poesia, com a diferença de que Carriego jamais se preocupou em representar o campo ou a cidade, quero dizer, as zonas centrais da cidade, tal como Lima também fez, mas transformou o arrabalde portenho, em especial o seu bairro de Palermo, no seu único universo.

A publicação de "Poemas Póstumos" e "A Canção do bairro" mudou em que a visão sobre Carriego?

A obra de Carriego desenvolve-se num período muito curto, não chegando talvez a dez anos. Não há registro de publicações suas em jornais e revistas antes de 1904 ou 1905. Morre em 1912. Não há tempo, portanto, para grandes mudanças. Mesmo assim a crítica percebeu, com razão, que havia duas fases bem marcadas na poesia carrieguiana.

Uma primeira, mais na linha do que no Brasil chamaríamos de poesia simbolista ou parnaso-simbolista, e que essa crítica, também acertadamente, não considera muito. Seria, em linhas gerais, uma poesia muito artificial, para não dizer falsa, sem maiores qualidades efetivamente poéticas.

A maior parte do livro Misas herejes compõe-se, de fato, de poemas dessa fase. No entanto, já aparecem nesse livro, em especial na seção “El alma del suburbio”, aquele tipo de poesia que faria a glória de Carriego, ou seja, aquela dedicada à representação dos subúrbios de Buenos Aires, do seu arrabal. Aí, sim, o poeta teria “acertado a mão”, aí começaria a sua verdadeira trajetória poética. É claro que essa visão tem lá os seus problemas, as suas falhas, mas de um modo geral ela é bastante válida.

Eu mesmo, não fosse por essa segunda fase, não estaria estudando a sua poesia. Assim que, para responder mais diretamente a sua pergunta, diria que a publicação dos Poemas póstumos veio consolidar, digamos assim, essa sua segunda e mais bem realizada fase. Não por acaso a principal seção desse segundo livro chama-se “La canción del barrio”.

Aliás, erroneamente, esse segundo livro ficou mais conhecido por esse título, que corresponde, na verdade, a apenas uma parte da obra. Mas seja como for, o certo é que todas as composições desse Poemas póstumos pertencem à segunda fase, ou seja, todos dizem respeito diretamente à recriação poética do bairro de Palermo."

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