Preciosidades

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sexo e sujeira no elevador


Amiga:
Conforme minha promessa, estou enviando um e-mail contando as novidades da minha primeira semana depois de ser transferida pela firma para o Rio de Janeiro. Terminei hoje de arrumar as coisas no meu novo apartamento. Ficou uma gracinha, mas estou exausta. São dez da noite e já estou pregada.


Segunda-Feira:
Cheguei na firma e já adorei. Entrei no elevador quase no mesmo instante que o homem mais lindo desse planeta. Ele é loiro, tem olhos verdes e o corpo musculoso parece querer arrebentar o terno. Lindooooo! Estou apaixonada. Olhei disfarçadamente a hora no meu relógio de pulso e fiz uma promessa de estar parada defronte ao elevador todos os dias a essa mesma hora. Ele desceu no andar da engenharia. Conheci o pessoal do setor, todos foram atenciosos comigo. Até o meu chefe foi super delicado. Estou maravilhada com essa cidade. Cheguei em casa e comi comida enlatada. Amanhã vou a um mercado comprar alguma coisa.


Terça-Feira:
Amiga! Precisava contar. Sabe aquele homem de quem falei? Ele olhou para mim e sorriu quando entramos no elevador. Fiquei sem ação e baixei a cabeça. Como sou burra! Passei o dia no trabalho pensando que preciso fazer um regime. Me olhei no espelho hoje de manhã e estou com uma barriguinha indiscreta. Fui no mercado e só comprei coisinhas leves: biscoitos, legumes e chás. Resolvido! Estou de dieta.


Quarta-Feira:
Acordei com dor-de-cabeça. Acho que foi a folha de alface ou o biscoito do jantar. Preciso manter-me firme na dieta. Quero emagrecer dois quilos até o fim-de-semana. Ah! O nome dele é Marcelo. Ouvi um amigo dele falando com ele no elevador. E ainda tem mais: ele desmanchou o noivado há dois meses e está sozinho. Consegui sorrir para ele quando entrou no elevador e me cumprimentou. Estou progredindo, né? Como faço para me insinuar sem parecer vulgar? Comprei um vestido dois números menor que o meu. Será a minha meta.


Quinta-Feira:
O Marcelo me cumprimentou ao entrar no elevador. Seu sorriso iluminou tudo! Ele me perguntou se eu era a arquiteta que viera transferida de Brasília e eu só fiz: "U-hum"... Ele me perguntou se eu estava gostando do Rio e eu disse: "U-hum". Aí ele perguntou se eu já havia estado antes aqui e eu disse: "U-hum". Então ele perguntou se eu só sabia falar "U-hum" e eu respondi: "Ã-hã". Será que fui muito evasiva? Será que eu deveria ter falado um pouco mais? Ai, amiga! Estou tão apaixonada! Estou resolvida! Amanhã vou perguntar se ele não gostaria de me mostrar o Rio de Janeiro no final de semana. Quanto ao resto, bem... ando com muita enxaqueca. Acho que vou quebrar meu regime hoje. Estou fazendo uma sopa de legumes. Espero que não me engorde demais.


Sexta-Feira:
Amiga! Estou arruinada! Ontem à noite não resisti e me empanturrei. Coloquei bastante batata-doce na sopa, além de couve, repolho e beterraba. Menina, saí de casa que parecia um caminhão de lixo. Como eu peidava! (nossa! Você não imagina a minha vergonha de contar isto, mas se eu não desabafar, vou me jogar pela janela!). No metrô, durante o trajeto para o trabalho, bastava um solavanco para eu soltar um futum que nem eu mesma suportava. Teve um momento em que alguém dentro do trem gritou:
"Aí! Peidar até pode, mas jogar merda em pó dentro do vagão é muita sacanagem!"


Uma senhora gorda foi responsabilizada. Todo mundo olhava para ela, tadinha. Ela ficou vermelha, ficou amarela, e eu aproveitava cada mudança de cor para soltar outro. O meu maior medo era prender e sair um barulhento. Eu estava morta de vergonha. Desci na estação e parei atrás de uma moça com um bebê no colo, enquanto aguardava minha vez de sair pela roleta. Aproveitei e soltei mais um. O senhor que estava na frente da mulher com o bebê virou-se para ela e disse:
"Dona! É melhor a senhora jogar esse bebê fora porque ele está estragado!".


Na entrada do prédio onde trabalho tem uma senhora que vende bolinhos, café, queijo, essas coisas de camelô. Pois eu ia passando e um freguês começou a cheirar um pastel, justo na hora em que o futum se espalhou. O sujeito jogou o pastel no lixo e reclamou:
"Pô, dona Maria! Esse pastel tá bichado!"


Entrei no prédio resolvida a subir os dezesseis degraus pela escada. Meu azar foi que o Marcelo ficou segurando a porta, esperando que eu entrasse. Como não me decidia, ele me puxou pelo braço e apertou o botão do meu andar. Já no terceiro andar ficamos sozinhos. Cheguei a me sentir aliviada, pois assim a viagem terminaria mais rápido. Pensei rápido demais. O elevador deu um solavanco e as luzes se apagaram. Quase instantaneamente a iluminação de emergência acendeu. Marcelo sorriu (ai, aquele sorriso...) e disse que era a bruxa da sexta-feira. Era assim mesmo, logo a luz voltaria, não precisava se preocupar. Mal sabia ele que eu estava mesmo preocupada.


Amiga, juro que tentei prender. Mas antes que saísse com estrondo, deixei escapar. Abaixei e fiquei respirando rápido, tentando aspirar o máximo possível, como se estivesse me sentindo mal, com falta de ar. Já se imaginou numa situação dessas? Peidar e ficar tentando aspirar o peido para que o homem mais lindo do mundo não perceba que você peidou? Ele ficou muito preocupado comigo e, se percebeu o mau cheiro, não o demonstrou. Quando achei que a catinga havia passado, voltei a respirar normal. Disse para ele que eu era claustrófoba.


Mal ele me ajudou a levantar, eu não consegui prender o segundo, que saiu ainda pior que o anterior. O coitado dessa vez ficou meio azulado, mas ainda não disse nada. Abaixei novamente e fiquei respirando rápido de novo, como uma mulher em estado de parto. Dessa vez Marcelo ficou afastado, no canto mais distante de mim no elevador. Na ânsia de disfarçar, fiquei olhando para a sola dos meus sapatos, como se estivesse buscando a origem daquele fedor horroroso. Ele ficou lá, no canto, impávido. Nem bem o cheiro se esvaiu e veio outro.


Ele se desesperou e começou a apertar a campainha de emergência. Coitado! Ele esmurrou a porta, gritou, esperneou, e eu lá, na respiração cachorrinho. Quando a catinga dissipou, ele se acalmou. As lágrimas começaram a escorrer pelos meus olhos. Ele me viu chorando, enxugou meus olhos e disse:
"Meus olhos também estão ardendo..."


Eu juro que pensei que ele fosse dizer algo bonito. Aquilo me magoou profundamente. Pensei: "Ah, é, FDP? Então acabou a respiração cachorrinho..."


Depois disso, no primeiro peido ele cobriu o rosto com o paletó. No segundo, enrolou a cabeça. No terceiro, prendeu a respiração, no quarto, ele ficou roxo. No quinto, me sacudiu pelos braços e berrou: "Mulher! Pára de se cagar!". Depois disso ele só chorava. Chorou como um bebê até sermos resgatados, quatro horas depois. Entrei no escritório e pedi minha transferência para outro lugar, de preferência outro País. Apague este e-mail depois de ler, tá?


Sua amiga, Ana. (... juro que não escrevi isso!)


P.S.: Este texto me veio por e-mail, foi publicado (não sei por quê) num site de conto erótico. O autor me é desconhecido (quem souber pode me comunicar que darei os créditos). É um exemplo da “genialidade” dos brasileiros, muitos são escritores inatos esperando por serem reconhecidos pelas Editoras que só pensam em vender, principalmente, “auto-ajuda”, “esoterismo” e “livros psico-grafados”, argh!!.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Amada América. Luís Pimentel



"Se papai me pega agora,/ de anágua e de combinação,/ será que ele me manda embora, / ou não?" 

Esta música é do Chico Buarque. E é a cara dela. A cara da América, a minha, quem dera minha. De anágua e de combinação. Às vezes, de peitinhos de fora, só de calcinha transparente. Às vezes, nem isto. América. Um nome, uma explosão, um continente. 

E se América me deixa agora? Vão para longe, pensamentos ruins. Como pode, meu Deus, um homem como eu, tão comedido, tão racional, moderado na bebida, xixi e cocô nas horas certas? Ouço uma canção que guardo ainda em bolacha. Sou dos tempos do vinil. América é geração CD: "Aos hipócritas que estão no júri,/tenho a declarar que não sou culpado, /nem sou inocente, de ter me envolvido com uma adolescente." Aldir Blanc. 

Será que ele também já amou uma adolescente? Sei que é bobagem misturar o criador com a obra. Acaba-se descobrindo que Marx batia na empregada, que Freud comia a própria filha e que Charles Chaplin era grosseiro e sem graça dentro de casa, um pai de matar o Carlitos de vergonha. 

Apaixonado por uma adolescente fogosa. O professor que sabe das coisas, conhece as artimanhas e manhas do mundo, se deixando levar pelo perfume e pelas labaredas que emanam dos corpos suados e sarados de suas alunas. 

"Vestida de azul e branco,/ trazendo um sorriso franco/ e um jeitinho encantador (...)/A normalista linda/ Não pode casar ainda..." 

Sim, eu ouvi Nelson Gonçalves. Só que era um menino. América substituiu há muito tempo o uniforme escolar por uma calça de brim azul, desbotada e até meio esfarrapada. Os tênis, com variações em cores berrantes, não lembram em nada os sapatos Vulcabrás sobre meiotinhas brancas. A blusa é mínima, tem decote generoso. Onde está o escudo do Instituto de Educação bordado no peito? A inocência não há mais e a normalista linda está em outra. 

É tão indisciplinada aqui, quanto na escola. Mexendo nos discos e nos livros, bebendo vinho no copo porque dizem que dá sorte. A terra desaba sobre os meus ombros quando alisa os pêlos do meu peito e pergunta, sonsa e sensual: - Quem foi que descobriu a América, que foi? 

Nem que o mundo caia sobre mim. Pede trégua quem está por baixo. O professor gagueja desarmado, apalermado, carente, solitário e inexperiente, apesar da idade. Conta os fios de cabelos brancos. Não são poucos. Feito criança, apaixonado por uma criança. Teve um tempo em que quis ser poeta, como todo mundo. 

América dos meus tormentos. Dezoito aninhos de charme, provocação e saúde, debutando diante dos olhos de todos os tarados do colégio ou do bairro. Chega à hora que chega, roubando o lençol e o travesseiro, querendo cada vez mais. Tão franca no gozo, sorrindo, gritando. Faz-me sempre lembrar a frase inusitada que ouvi num botequim. "Fulana gozou muito. Gozou feito uma cutia." Nunca vi cutia gozando. Nem sei se cutia goza. Mas acho que América goza feito uma cutia louca, endiabrada, daquelas que correm no meio do mato ou entre as árvores do Campo de Santana, no Rio de Janeiro. 

O mundo explode em chamas e América coleciona letras de música no caderninho e se diz "tarada pelos olhinhos verdes meio azuis e meio ardósia do Chico". Também "curte" Milton Nascimento, Marina e "rock pesado". Eclética e elétrica. Compreendo, o mundo também não passa de um enorme clichê. 

Achou por bem ficar com uma cópia da chave do meu apartamento. Achei por bem não negar nem discutir. – Facilita as coisas, você não acha? – Claro. 

Faço qualquer coisa para viver bem. Para cultivá-la e cativá-la. Para tê-la ao meu lado, com ou sem chave de minha casa. Já tem a chave do meu coração. Eu é que tenho tudo a perder. – Não sei se você é o homem da minha vida. 

Ainda mais essa, agora. Claro, quer me deixar inseguro, como se fosse preciso. Finjo indiferença e bom humor. – Problema seu. De minha parte, América, devo dizer que estou perdidamente apaixonado. Mas gostaria que você tirasse esse CD do Chico, para que eu pudesse ouvir um pouco de Pixinguinha. 

Não me escuta, mas não importa. Confere a posição impecável dos quadris e levanta a perna diante do espelho do armário. O pescoço para lá e para cá, em suaves movimentos. A coluna reta, a bunda empinada, as pernas escandalosamente definidas, meu Deus. Quem dera essa mulher me amasse loucamente. 

Desapareceu da casa dos pais há mais de um mês. Quase não sai do meu apartamento. Se abancou com os meus discos, passeia de calcinha e camiseta do quarto para a sala. Até na cozinha, o pé descalço sobre a mesa onde fazemos as refeições. Foda-se. Lá vou eu reclamar? 

Prepara um café, vez ou outra, "quando pinta a vontade". Vasculha meus livros e se acha no direito de achar Graciliano Ramos "um saco". Ofensa grave, só pode ser provocação. Mesmo assim, contudo e porém, vai ficando para a minha alegria. 

Qualquer sonho é melhor do que a insônia doentia. 

Tenho me afastado dos amigos de minha idade, para não ficar ouvindo conselhos dispensáveis e desnecessários. Depravado é a mãe de quem falou ou pretendia falar. Saibam, os senhores que estão no júri, que foi essa moça quem inventou desculpas para vir ao apartamento do professor, "fazer umas pesquisas". 

Ninguém acredita? Fodam-se todos. 

Amoleci demais. Estou bestamente perdido de amor, caceta. Comecei a beber além da conta e a sentir ciúmes, caceta. E a louca ali, dando pulinhos animados, se desmanchando toda para contar as novidades, caceta. De papinho com os amigos, esparramada no meu sofá, usando o meu telefone. 

- Porra, América. 

- Não estressa. 

- Caceta. 

Ontem recebeu uma ligação bastante suspeita. Desligou com um "até já, amizade", beijinhos para lá e para cá. Desconfiado, não fui ao colégio dar as minhas aulas. É a terceira vez que falto esta semana. E a sonsa, como se nada estivesse acontecendo, continua ajeitando descaradamente os quadris e levantando a perna até a altura do meu coração. Flecha logo, ingrata. 

À noite, disse que estava me achando triste. Fez perguntas e carícias, a mais pura inocência. Abriu um vinho e fez sanduíches, cantarolando um samba velho do velho Chico, um samba dos que eu ainda gosto: "O homem da rua, / vive só por teimosia,/ não encontra companhia/ mas pra casa não vai, não."
Fizemos amor por umas boas horas e América acordou feliz. Deu vários dos seus pulinhos no quarto e me serviu café na cama. Também me senti feliz, mas só até o primeiro barulhinho do telefone.
América atendeu e desligou rápido. Começou a arrumar as malas. Passaria uns dias numa praia distante, em companhia de alguns amigos. 

Caceta. 

Deu um beijo e bateu a porta. 

Não conheço esses amigos. Não conheço América. 

O segundo barulhinho foi para mim. O diretor do Colégio me dispensando, por abandono de serviço.
São dez horas de uma manhã sem graça. Procuro América de perninha levantada no espelho do armário. Nenhum pescoço em suaves movimentos, nenhuma bunda empinada. Não vejo a imagem dela, mas vejo a minha. Que horror. Os olhos estão sombrios e empapuçados.


Luis Pimentel nasceu em Feira de Santana (BA), em 1953. Vive no Rio de Janeiro desde 1975. Trabalhou em diversos jornais e revistas (MAD, Última Hora, Jornal do Brasil). Este texto foi transcrito do livro "Grande homem mais ou menos", de 2007. 

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

amor sagrado. Paulo Scott

ela estende o braço com cautela

para não se desenrolar do cobertor e dos plásticos

toca-o na perna, ele aponta os carros que passam

diz bem alto o nome, modelo e ano,

detalhes do motor, acabamento, inovações,

e a garrafa em sua mão está pela metade,

‘amanhã é segunda-feira’, ela diz,

protegendo a barriga e se deliciando por vê-lo sorrir,

“vamos embora... jamais encontrarão nosso filho”,

ele responde (sem se deter)

a chuva traz um cheiro de frango,

e as gotas tem a temperatura desagradável do outono

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Ser escritor é uma merda. Marcelo Mirisola


Mauro Hossepian entrevista o escritor Marcelo Mirisola.

Marcelo Mirisola é tão convencional quanto seus livros, ou seja, nem um pouco. Para entrevistá-lo, tentei o caminho natural. Liguei para a Editora 34, que publicou seu segundo livro, “O herói devolvido”. A resposta: “Olha, você tem que ligar pra casa dos pais dele aqui em São Paulo porque o Marcelo mora numa praia deserta e não tem telefone”. Liguei, falei com o irmão dele. Ele pediu que deixasse o meu número, daria o recado. “Fica tranquilo que o Marcelo liga pra cá dia sim, dia não.” Lá pelas oito da noite do dia seguinte, ele ligou. De um orelhão, com o cartão telefônico já no fim. Marcamos uma nova conversa para o dia seguinte, ao meio-dia, a cobrar. Marcelo Mirisola não tem telefone não por ser excêntrico, mas por não ter dinheiro. Da mesma forma, não tem computador, escreve à máquina. Mora na Praia do Santinho, ao norte da Ilha de Florianópolis (SC), mas gostaria de morar na cidade. “É que praia é mais barato.” Pesca todos os dias. Porque gosta? “Não, pra comer mesmo”. Tem 34 anos e vive de uma mesada de R$300,00 da mãe.” Apesar de tudo isso, continua escrevendo e jamais pensou em arrumar um emprego. Vagabundo? “Não,cara, sou um inválido. Não sei fazer nada a não ser escrever.” Atualmente, está sendo perseguido por um agiota, que lhe emprestou dinheiro para bancar seu segundo livro.

De onde vem essa sua linguagem crua, direta, cheia de palavrões?

Proponho um desafio: tenta substituir os palavrões por outras palavras. Não dá, o texto os exige. É a palavra certa na hora certa. Tudo no meu texto é premeditado, até as gratuidades. É um trabalho de construção, escrever é o meu ofício. Escrevo à máquina, falaram isso pra você?

É fobia da informática?

Não, é por falta de grana mesmo pra comprar um computador. Minha mãe me sustenta.

Você não sente vergonha de ser sustentado pela mãe aos 34 anos?

Sinto muita, fico puto, mas não tem o que fazer. Escrevo porque sou um inválido para qualquer outra atividade. Sou advogado, mas jamais pensei em trabalhar com isso. Fiz só o estágio porque era obrigatório para me formar. Não saberia ser advogado, assim como não saberia ser garçom.

O que você fez logo depois de se formar?

Eu me formei em 1993, em Santa Catarina, e voltei para a casa dos meus pais, em Santos (SP). Aí foi aquela humilhação terrível, aquela cobrança. Diziam que eu era vagabundo, que só gastava dinheiro com putaria etc. Daí eu fui viajar. Fui para onde dava pra ir com pouco dinheiro. A maioria dos lugares era praia.

O conto “Buenos Aires até o fim”, de “O herói devolvido”, se passa em Buenos Aires. Você esteve lá?

Estive, fiquei na casa de uma amiga, não gastava nada.

Quando você começou a escrever?

Comecei a ler e escrever em 1989. Até então não tinha lido um livro. Li “Pergunte ao pó”, de John Fante, e me identifiquei. Daí não parei mais. Aquela coisa de um autor levar a outro. Li (Jean-Jacques) Rosseau, Santo Agostinho, Henry Miller, Céline (Louis-Ferdinand Céline), Reinaldo Moraes e todos os beatniks. Gosto de literatura confessional. Comecei a escrever meu primeiro livro, “Fátima fez os pés pra mostrar na choperia” (Editora Estação Liberdade), em 1992, e ele só foi publicado em 1998, graças à Maria Rita Kehl (escritora e psicanalista), minha amiga, que bancou parte da edição.

E o segundo livro?

O segundo livro entrei (sic) com R$3 mil. Metade disso veio de um carro que tinha e o resto de um agiota. Aliás, estou desesperado porque esse agiota anda atrás de mim.

Você não pagou a dívida?

Não, porra, não tenho grana. Estou de saco cheio dessa história de ser escritor. É só sacrifício. A literatura, antes de tudo, é uma maldição. Ser escritor é uma merda. Saí na “Playboy”, na “Folha de São Paulo”, no “Estado de São Paulo”, mas de que adianta? A grana não aparece e tem um agiota me perseguindo. Precisava me mudar.

Deve gostar de praia, não?

Não, não gosto. Gosto de ver praia, mas não de estar na praia. Moro em praia porque é barato. Se tivesse dinheiro, morava na cidade.

Há quanto tempo você mora em Florianópolis?

Três anos. Queria ir para Argentina ou Uruguai , mas por enquanto não dá. Vivo com R$300 por mês. Puxo rede todo dia.

Gosta de pescar?

Não, pesco para comer mesmo. Minha alimentação é peixe, pirão, salsicha e Miojo.

Você se isola porque precisa ou porque gosta?

Se pudesse escolher, não me isolaria. Não é por prazer, não.

A crítica o apresenta como um bom contista. Conto é o que você mais gosta de ler e escrever?

Não gosto de ler contos, mas romances. Escrevo contos porque ainda não consegui escrever um romance. Escrevi uns romances, mas rasguei todos. Ficaram uma merda. Agora estou escrevendo uma novela. Sigo aquela receita do Guimarães Rosa, que dizia que quando se vai escrever alguma coisa tem que se pensar em construir uma catedral e não um castelo de areia. Quero fazer boa literatura, mas até agora só levei prejuízo.

Quem você gosta de ler?

Nos contos, os melhores são (Julio) Cortázar, Jorge Luis Borges e Dalton Trevisan. Dos romancistas, sem dúvida, em primeiro lugar vem Céline (Louis-Ferdinand Céline). “Viagem ao fim da noite” é o melhor livro que li na vida. Mas tem vários outros. (Charles) Bukowski, Raduan Nassar, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony...

E o Guimarães Rosa?

Prefiro outro tipo de literatura. Não li “Grande Sertão: veredas”. Outro de que gosto é o Cesare Pavese (italiano, autor de “Mulheres sós”).

Se você tivesse que optar, gostaria de agradar o público ou a crítica?

Quero que meu leitor se foda e a crítica também. Não dá para pensar assim. Até tenho curiosidade em ler o que escrevem sobre meus livros, mas quero que eles se fodam. Todo o mundo ganha dinheiro com isso, o editor, os jornalistas, os críticos, menos o escritor. Fico puto com isso. Não estou falando que escrevo por grana, mas queria o mínimo: poder me sustentar e não ser perseguido por agiota.

Você acha que para ser escritor é preciso viver intensamente, acumular o máximo de experiências possíveis, conhecer vários lugares etc?

Acho que sim. O ponto de partida da ficção é a realidade.

E essa obsessão por sexo em seus textos? Tem alguma relação com suas experiências pessoais?

É uma obsessão mesmo, a palavra é essa. Valorizo o sexo, gosto de chafurdar na libido. Mas sou um cara tranquilo, sou gordinho, uso óculos...

Ao ler seus textos, logo se imagina que o autor é jovem. Uma vez, ouvi uma escritora dizer que bom escritor é aquele cujo texto impossibilita que se saiba qual a idade do escritor. Você concorda com isso?

Acho isso uma bobagem.

Há semelhanças temáticas e de linguagem entre as suas obras e as de escritores de sua geração,como André Sant’Anna e Nelson de Oliveira. Você acredita que há um movimento literário nascendo?

Não, não acho. Há certa afinidade entre a gente porque temos praticamente a mesma idade, mas meu trabalho é diferente do trabalho do André, por exemplo. Ele criou uma fórmula literária que não sei se vai conseguir manter. Tenho uma voz literária, o que é diferente. Prefiro o Nelson ao André.

Você tem alguma meta ou algum projeto em relação a essa novela que está escrevendo?

Para mim, escritor que faz projeto, pesquisa, essas coisas, é picareta.

Você não faz pesquisa para escrever seus livros?

Não. É um processo íntimo.

(Entrevista publicada em julho de 2000, na revista virtual Submarino, transcrito do livro “43 Escritores – Entrevistas na Revista Submarino”, de 2002).

sábado, 28 de novembro de 2009

A margarida enlatada. Caio Fernando Abreu


Foi de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro quando viu um canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do paletó.


Diga-se em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida. Sem saber exatamente por que, ficou pensando em algumas notícias que havia lido dias antes: o índice de suicídios nos países superdesenvolvidos, o asfalto invadindo as áreas verdes, a solidão, a dor, a poluição, a loucura e aquelas coisas sujas, perigosas e coloridas a que chamavam jovens. De repente, a luz. Brotou. Deu um grito:


—É isso!


Chamou imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e esqueceu de almoçar e telefonou para suas plantações e mandou que preparassem a terra para novo plantio e ordenou a um de seus braços-direitos que comprasse todos os pacotes de sementes encontráveis no mercado depois achou melhor importá-las dos mais variados tamanhos cores e feitios depois voltou atrás e achou melhor especializar-se justamente na mais banal de todas aquela vagamente redonda de pétalas brancas e miolo granuloso e conseguiu organizar em poucos minutos toda uma equipe altamente especializada e contratou novos funcionários e demitiu outros e precisou tomar uma bolinha para suportar o tempo todo o tempo todo tinha consciência da importância do jogo exaustou afundou noite adentro sem atender aos telefonemas da mulher ao lado da equipe batalhando não podia perder tempo quase à meia-noite tudo estava resolvido e a campanha seria lançada no dia seguinte não podia perder tempo comprou duas ou três gráficas para imprimir os cartazes e mandou as fábricas de latas acelerar sua produção precisava de milhões de unidades dentro de quinze dias prazo máximo porque não podia perder tempo e tudo pronto voltou pelo meio do aterro as margaridas fantasmagóricas reluzindo em branco entre o verde do aterro a cabeça quase estourando de prazer e a sensação nítida clara definida de não ter perdido tempo. Dormiu.


II


No dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:


Ponha uma margarida na sua fossa.


Sorriu. Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos, chamadas:


O índice de poluição dos rios é alarmante.

Não entre nessa.

Ponha uma margarida na sua fossa.


Ou

O asfalto ameaça o homem e as flores.

Cuidado.

Use uma margarida na sua fossa.


Ou

A alegria não é difícil.

Fique atento no seu canto.

Basta uma margarida na sua fossa.


Jingles. Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As chamadas continuavam.

O índice de suicídios no país aumentou em 50%.

Mantenha distância.

Há uma margarida na porta principal.


Contratos. Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos. Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a explosão. As prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto: margaridas cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração, alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno. Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil. Em seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país. Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o anúncio:


Margarida já era, amizade.

Saca esta transa:

O barato é avenca.


III

Não demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada. Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos. Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro — comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de circulação e incinerou-o.


Só depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.


Ele perguntou:


– Procura margaridas?

Ela respondeu:

– Já era.

Ele perguntou:

– Avencas?

Ela respondeu:

– Falou.


P.S.: Texto extraído do livro “O ovo apunhalado”, de 1976.