"Se papai me pega agora,/ de anágua e de combinação,/ será que ele me manda embora, / ou não?"
Esta
música é do Chico Buarque. E é a cara dela. A cara da América, a minha, quem
dera minha. De anágua e de combinação. Às vezes, de peitinhos de fora, só de
calcinha transparente. Às vezes, nem isto. América. Um nome, uma explosão, um
continente.
E se América
me deixa agora? Vão para longe, pensamentos ruins. Como pode, meu Deus, um
homem como eu, tão comedido, tão racional, moderado na bebida, xixi e cocô nas
horas certas? Ouço uma canção que guardo ainda em
bolacha. Sou dos
tempos do vinil. América é geração CD: "Aos hipócritas que estão no
júri,/tenho a declarar que não sou culpado, /nem sou inocente, de ter me
envolvido com uma adolescente." Aldir Blanc.
Será que
ele também já amou uma adolescente? Sei que é bobagem misturar o criador com a
obra. Acaba-se descobrindo que Marx batia na empregada, que Freud comia a
própria filha e que Charles Chaplin era grosseiro e sem graça dentro de casa,
um pai de matar o Carlitos de vergonha.
Apaixonado
por uma adolescente fogosa. O professor que sabe das coisas, conhece as
artimanhas e manhas do mundo, se deixando levar pelo perfume e pelas labaredas
que emanam dos corpos suados e sarados de suas alunas.
"Vestida
de azul e branco,/ trazendo um sorriso franco/ e um jeitinho encantador (...)/A
normalista linda/ Não pode casar ainda..."
Sim, eu
ouvi Nelson Gonçalves. Só que era um menino. América substituiu há muito tempo
o uniforme escolar por uma calça de brim azul, desbotada e até meio
esfarrapada. Os tênis, com variações em cores berrantes, não lembram em nada os
sapatos Vulcabrás sobre meiotinhas brancas. A blusa é mínima, tem decote
generoso. Onde está o escudo do Instituto de Educação bordado no peito? A
inocência não há mais e a normalista linda está em outra.
É tão
indisciplinada aqui, quanto na escola. Mexendo nos discos e nos livros, bebendo
vinho no copo porque dizem que dá sorte. A terra desaba sobre os meus ombros
quando alisa os pêlos do meu peito e pergunta, sonsa e sensual: - Quem foi que
descobriu a América, que foi?
Nem que o
mundo caia sobre mim. Pede trégua quem está por baixo. O professor gagueja
desarmado, apalermado, carente, solitário e inexperiente, apesar da idade.
Conta os fios de cabelos brancos. Não são poucos. Feito criança, apaixonado por
uma criança. Teve um tempo em que quis ser poeta, como todo mundo.
América
dos meus tormentos. Dezoito aninhos de charme, provocação e saúde, debutando
diante dos olhos de todos os tarados do colégio ou do bairro. Chega à hora que
chega, roubando o lençol e o travesseiro, querendo cada vez mais. Tão franca no
gozo, sorrindo, gritando. Faz-me sempre lembrar a frase inusitada que ouvi num
botequim. "Fulana gozou muito. Gozou feito uma cutia." Nunca vi cutia
gozando. Nem sei se cutia goza. Mas acho que América goza feito uma cutia louca,
endiabrada, daquelas que correm no meio do mato ou entre as árvores do Campo de
Santana, no Rio de Janeiro.
O mundo
explode em chamas e América coleciona letras de música no caderninho e se diz
"tarada pelos olhinhos verdes meio azuis e meio ardósia do Chico". Também
"curte" Milton Nascimento, Marina e "rock pesado". Eclética
e elétrica. Compreendo, o mundo também não passa de um enorme clichê.
Achou por
bem ficar com uma cópia da chave do meu apartamento. Achei por bem não negar
nem discutir. – Facilita as coisas, você não acha? – Claro.
Faço
qualquer coisa para viver bem. Para cultivá-la e cativá-la. Para tê-la ao meu
lado, com ou sem chave de minha casa. Já tem a chave do meu coração. Eu é que
tenho tudo a perder. – Não sei se você é o homem da minha vida.
Ainda
mais essa, agora. Claro, quer me deixar inseguro, como se fosse preciso. Finjo
indiferença e bom humor. – Problema seu. De minha parte, América, devo dizer
que estou perdidamente apaixonado. Mas gostaria que você tirasse esse CD do
Chico, para que eu pudesse ouvir um pouco de Pixinguinha.
Não me
escuta, mas não importa. Confere a posição impecável dos quadris e levanta a
perna diante do espelho do armário. O pescoço para lá e para cá, em suaves
movimentos. A coluna reta, a bunda empinada, as pernas escandalosamente
definidas, meu Deus. Quem dera essa mulher me amasse loucamente.
Desapareceu
da casa dos pais há mais de um mês. Quase não sai do meu apartamento. Se
abancou com os meus discos, passeia de calcinha e camiseta do quarto para a
sala. Até na cozinha, o pé descalço sobre a mesa onde fazemos as refeições.
Foda-se. Lá vou eu reclamar?
Prepara
um café, vez ou outra, "quando pinta a vontade". Vasculha meus livros
e se acha no direito de achar Graciliano Ramos "um saco". Ofensa
grave, só pode ser provocação. Mesmo assim, contudo e porém, vai ficando para a
minha alegria.
Qualquer
sonho é melhor do que a insônia doentia.
Tenho me
afastado dos amigos de minha idade, para não ficar ouvindo conselhos
dispensáveis e desnecessários. Depravado é a mãe de quem falou ou pretendia
falar. Saibam, os senhores que estão no júri, que foi essa moça quem inventou
desculpas para vir ao apartamento do professor, "fazer umas
pesquisas".
Ninguém
acredita? Fodam-se todos.
Amoleci
demais. Estou bestamente perdido de amor, caceta. Comecei a beber além da conta
e a sentir ciúmes, caceta. E a louca ali, dando pulinhos animados, se
desmanchando toda para contar as novidades, caceta. De papinho com os amigos,
esparramada no meu sofá, usando o meu telefone.
- Porra,
América.
- Não
estressa.
- Caceta.
Ontem
recebeu uma ligação bastante suspeita. Desligou com um "até já,
amizade", beijinhos para lá e para cá. Desconfiado, não fui ao colégio dar
as minhas aulas. É a terceira vez que falto esta semana. E a sonsa, como se
nada estivesse acontecendo, continua ajeitando descaradamente os quadris e
levantando a perna até a altura do meu coração. Flecha logo, ingrata.
À noite,
disse que estava me achando triste. Fez perguntas e carícias, a mais pura
inocência. Abriu um vinho e fez sanduíches, cantarolando um samba velho do
velho Chico, um samba dos que eu ainda gosto: "O homem da rua, / vive só
por teimosia,/ não encontra companhia/ mas pra casa não vai, não."
Fizemos
amor por umas boas horas e América acordou feliz. Deu vários dos seus pulinhos
no quarto e me serviu café na cama. Também me senti feliz, mas só até o
primeiro barulhinho do telefone.
América
atendeu e desligou rápido. Começou a arrumar as malas. Passaria uns dias numa praia
distante, em companhia de alguns amigos.
Caceta.
Deu um
beijo e bateu a porta.
Não
conheço esses amigos. Não conheço América.
O segundo
barulhinho foi para mim. O diretor do Colégio me dispensando, por abandono de
serviço.
São dez
horas de uma manhã sem graça. Procuro América de perninha levantada no espelho
do armário. Nenhum pescoço em suaves movimentos, nenhuma bunda empinada. Não
vejo a imagem dela, mas vejo a minha. Que horror. Os olhos estão sombrios e
empapuçados.
Luis Pimentel nasceu em Feira de Santana (BA), em 1953. Vive no Rio de Janeiro desde 1975. Trabalhou em diversos jornais e revistas (MAD, Última Hora, Jornal do Brasil). Este texto foi transcrito do livro "Grande homem mais ou menos", de 2007.
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