Preciosidades

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Ainda Orangotangos. Paulo Scott


Trinta e quarto de agosto. O ventilador roda, insistente. Ele acorda gélido, acaricia o que sobrou da namorada sob o lençol. Sua bexiga arde de frio. Sai da cama, o pé direito bate na xícara, o pó se espalha. Quarenta mil. Tenta recolher, desiste. Os pregos sob a pele do braço direito incomodam, ao redor deles há hematomas quase pretos. Foi estupidez brigar com o pai dela, socá-lo daquele jeito. Saudade! O que o merda entende de saudade? Segura a glande, abre os curativos, pega a pomada, espalha sobre as feridas, fecha com a mesma gaze. Vai até a cozinha. Droga! O vizinho começa a tocar o Paulinho da Viola de sempre. Abre a geladeira, os pães de sanduíche (sacos e sacos da mesma marca) aguardam os fungos se multiplicarem. Estão quase prontos, pensa. Pega três ovos, duas maçãs, a urina fervida da ex, põe no liquificador. Bate. A mão desliza até o controle remoto. Pronto! O som explode nas oito caixas espalhadas pela cozinha, acaba com Paulinho da Viola. Desliga o liquidificador, côa, usa o caldo para regar as violetas. Vai ao banheiro. É forte o cheiro de queimado. A pele (não se sabe de quem) aguarda sob a água morna do chuveiro, os olhos dela miram-no pedindo paz. Ele prossegue, ajoelha-se par tomá-la e vesti-la. A pele está apertada, ele fica aos berros dentro dela. Ninguém ouvirá. A pele não sabe quem realmente é, apenas que novamente há gritos intermináveis dentro dela (não há nome viável para esses dois juntos). Escolhem roupas boas, caminham até a porta de entrada. Está sempre aberta (ninguém ousa passar). No cabide, uma bolsa de mulher; eles a pegam, tiram de dentro uns óculos escuros. Saem (sem tocar nos presentes de casamento). É curioso, é como se mover dentro de uma geléia de pimenta. Descem as escadas, caminham pela Bento Gonçalves, encontram o menino na esquina da Guilherme Alves, sobem a lomba. Chegam em frente à casa antiga. Empurram o portão de ferro, mandam o rapaz esperar, ajeitam o cabelo e a camisa de seda, tiram os óculos, tocam a campainha. A filha da empregada abre. Cadê o pai?, perguntam. Ela não responde. Atravessam o corredor escuro, os tacos do parquê estão soltos, e a tinta verde-água mofada nas paredes. O velho está sentado à mesa de jantar, lê o jornal do dia. Cumprimentam-se. Faríamos cinqüenta e cinco anos hoje?, dizem com prudência. Quem faria cinqüenta e cinco anos hoje?, o velho pergunta e ri. Eu... e a mamãe... quero dizer.... se ainda estivesse viva. Não mencione a pessoa dela, o pai ameaça esbofeteá-lo. A cumulação de olhos aguarda o tapa que não vem. Estou com fome... é meu aniversário. O velho ri, manda a empregada pôr mais um prato na mesa e avisa: hoje, tua filha não comerá. A empregada concorda. A comida é servida (está envenenada como sempre, dizimou a família inteira, mas o velho está custando, e ainda há este tipo, que aparece uma vez por ano se fazendo passar por filho, também). O pai almoça rápido e se retira, vai sestear. No meio do corredor, arrota alto. Eles olham a empregada, arrancam a comida dela com destreza criminosa, ela ainda tem tempo de cuspir no frango. Eles viram o prato dela no seu. Ela se levanta. Eles pedem cerveja: toda que houver, é meu aniversário! Ela traz meio engradado e sai. Eles bebem toda a cerveja, assistem à sessão da tarde inteira (riem, choram), que festa! A cerveja acaba, hora de ir. No meio do corredor, arrotam. Param em frente à última porta, à direita antes da sala, batem: licença, pai. É dinheiro, aposto que é, diz o velho, deitado sob duas mantas térmicas. Mas antes vou te dar um conselho... na vida, o segredo é suar. Sim, suor, eles respondem, querendo agradar. O velho pega a carteira, cinco notas de vinte. Despedem-se. Na sala, eles ainda tentam violar a filha da empregada, mas a menina está armada e lhes espeta uma tesoura na altura do quadril, mantendo-a em punho, abre a porta, eles saem. O menino os aguarda: conseguiu, pai? Não tem idéia de como foi difícil, respondem, esforçando-se para não cambalear. Conseguiu? Não, esse velho não presta, conversamos até agora, eu disse pra ele que se não tivesse os vinte e cinco, ao menos me desse quinze ou dez, mas nem isso. Desalmado! O menino se desespera: então, meu filho vai morrer. Não!, neto meu jamais ficará desamparado... Quanto tu tem aí? Dois, o menino responde e o encara esperançoso. É suficiente, tomam o dinheiro dele; irei ao Centro fazer um empréstimo, darei um rim meu como garantia, a financeira não pode recusar. Pai, muito obrigado, o menino chora. Descem a Guilherme Alves, o menino enxuga as lágrimas na manga da camiseta, eles aproveitam a distração para ajeitar as duas notas junto ao resto do dinheiro no bolso da camisa. Na esquina, botam os óculos escuros, dizem ao menino que vá pra casa e dê bastante água ao bebê: é a melhor coisa pra febre. Tomam o ônibus, observam o menino de longe, descem duas paradas depois, sem pagar: está indo pra rodoviária?, eu preciso ir até a Salgado Filho... pode abrir, por favor? Entram no prédio, sobem as escadas, entram no apartamento. Ele grita com toda a força dentro da pele. Ela rasga. Ele a despe, vai ao banheiro, liga o chuveiro, espera a água amornar. Deixa a pele ali no boxe, ela o encara pedindo paz. Ele ri (tem medo de si mesmo, é verdade). O cheiro de queimado volta, ele tranca a porta. Vai à cozinha, enfia o cateter na bexiga, urina no panelão de alumínio (a melhor coisa do dia), põe a ferver. Senta no sofá, conta o dinheiro, abre os curativos. Ouve barulho na entrada, alguém se arrasta. Que idiota ousaria? A luz do corredor reflete na parede uma sombra lenta. Pela altura, um bebê.


Texto transcrito extraído do livro "Ainda Orangotangos", de Paulo Scott, de 2006, editora Bertrand Brasil.

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