Preciosidades

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Antecedentes criminais poéticos. Fabrício Carpinejar


Poesia não é um crime premeditado, em que o escritor forja álibis e procura esconder as pistas. Não sou capaz de dizer: vou escrever um poema. Escrevo como quem existe. Ninguém hesita em existir. Percebo a poesia desde o princípio como um crime passional. É uma explosão de nervos, de música e de pensamento. Surge de um ato solitário, intransferível e altamente singular. Significa matar o amor para que ele sobreviva sem a pieguice. Desbastar o poema para que só fique o essencial. O verso é como uma escultura: o rosto está lá dentro, sendo preciso descobri-lo extraindo pedra. Há quem pense que o texto poético se faz derramando sentimentos no papel, inflamando o ego da namorada, chantageando os amigos com loas, descrevendo as belezas do mundo, com aquela pelúcia própria da hibernação dos ursos (e que só dá alergia!), registrando nossos melhores momentos no diário. É justamente o contrário: não é desabafo, poesia revela a realidade sem intermediários e filtros, uma comoção psíquica, nunca servindo para maquiar ou obscurecer o cotidiano, mas para apanhar os detalhes e as distrações que tornam o leitor mais verdadeiro e intenso.

Explicaram ao jovem que versos servem para o deslumbramento, quando eles estão interessados em encontrar algo que expresse sua inquietude civil e o vigor de seus desejos. Na verdade, ensinaram ao adolescente a não gostar de poesia, porque a apresentaram tão fraturada e deslocada do seu mundo, que ele foi tirar suas fotografias 3X4 nas letras da música popular brasileira. Ninguém avisou que o poema pode ter uma história, um enredo, um suspense, uma indignação. Apesar de todo modernismo, pós-modernismo e hipertividade textual, ainda predomina uma visão romântica do gênero, que não condiz com a aventura das diferenças que a palavra propõe. Falta rigorosamente na poesia um meio-termo entre o popular e o erudito, entre a realidade e o imaginário. Falta uma linguagem que testemunhe e critique nosso tempo, capaz de dar uma função coletiva às descobertas pessoais. Que não seja reduzida a trocadilhos publicitários ou a academicismos de dicionaristas de plantão. A raiz amarga do problema reside na ausência de orientação. Por que a poesia não está comparece como criação na sala de aula, ficando restrita à leitura avulsa de clássicos e bambas do vestibular? Escrever é ler em dobro.

O adolescente começa na literatura mediante a poesia, seja em cartas, seja em cantadas. Sem acompanhamento escolar e sem afiar a linguagem ao longo dos anos, o mesmo adolescente atrofia seu gosto e vai considerar inacessível a interpretação poética. Ninguém nasce jogando futebol, tocando violão, isso é coisa que se aprende exercitando. A situação se agrava pelo medo da subjetividade do professor, que pretende arrancar uma única resposta de toda a turma, enquanto há tantas reações de acordo com a criatividade do interlocutor. O vestibular já é um outro tormento: poucos vestibulandos são entusiasmados a degustar os livros. Em cima da hora, pegam atalhos nos cardápios, manuais de literatura e nos resumos dos movimentos. No fim da conta, até os autores errariam as questões sobre suas obras durante as provas.

Os poemas são considerados fáceis na feitura e complicados na absorção. Quais os motivos? Ao invés de servir para uma melhor percepção da convivência, tem sido empregada para enrolar e reproduzir atitudes individualistas. O adolescente crê ingenuamente que poesia é para a vaidade, quando ela deveria atuar para combatê-la. O mercado apenas reproduz o pessimismo. Fato comprovado a olho nu: na maioria das livrarias, a seção de poesia dorme em algum canto soturno, no alcance visual de um cachorro e vislumbrada na hora de amarrar o tênis. Do mesmo modo em que se percebe um aumento de poetas on-line, é uma maratona localizá-los nas prateleiras. O mercado está disseminado, o que não significa organização.

As tiragens estão progressivamente menores. Dos mil exemplares de antigamente, os escritores contam com um leve pacote de 500 ou 300 exemplares, restritos à distribuição entre amigos. A expressão "originais na gaveta" está sendo substituída por "livros na estante". Vir a público deixou de ser o desafio, agora é conseguir a distribuição da obra. Publicar poesia tem servido apenas para o autor alardear que cumpriu um dos três objetivos clássicos da biografia, além de ter um filho e plantar uma árvore.

Devemos também esquecer a literatura heróica, de ressentimento histórico, que advoga o passado perante o "resto do Brasil" (essa expressão diz tudo sobre a desvalia megalomaníaca dos gaúchos). Não adianta fazer ouvidos de mercador ao alarido da esquina. Não conseguiremos dormir e nem devemos. Bento Gonçalves não é mais importante do que a senhora alimentando seu gato às 6h, diante do meu prédio.

Fabrício Carpinejar
Publicado no Diário de Santa Maria, Santa Maria (RS) - Copiado do Blogue do Autor.

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