Preciosidades

segunda-feira, 29 de março de 2010

Geração do medo. Elizete Feliponi

Na minha infância, morei em um lugar no qual nascentes de água afloravam da terra. Existia um tanque com uma mangueira que trazia água direto do morro, a qual corria continuamente, 24 horas por dia, e eu, com a ingenuidade e curiosidade só possíveis a uma criança, ficava horas admirando a água e pensava: “Isso nunca acaba, pois vem da terra e do céu ao mesmo tempo”. Hoje sei que minha teoria estava equivocada.

Aprendi na escola que a água “era” inodora, incolor e insípida. Hoje, sei que a água tem cheiro, cor e gosto. Meus pais tomavam banho em rios. Eu já não tive esse privilégio, mas ainda via os vizinhos pescando nestes ambientes. Meus sobrinhos nem tomam banho e nem pescam em rios e aprendem na escola que a água é um bem finito. Perguntas rondam o imaginário de qualquer pessoa em estado de alerta: quando será o próximo terremoto? Até quando teremos água potável? Não temos respostas, mas uma fé inabalável na ciência, paralela à falta de credibilidade nas pessoas. Estas incertezas contribuem para que as novas gerações cresçam com o medo e com a falta de esperança.

O “bicho-papão” da modernidade assume diferentes formas e deixou de ser o monstro que se esconde embaixo da cama. Para as crianças de hoje, os medos são outros. Pais, que devem proteger, são julgados por jogar filha da janela; agulhas são usadas para tortura (instrumento e ação dignos da Idade Média). Temos, ainda, o medo da separação dos pais, do abandono e da violência urbana. Logo, crescer com tranquilidade, em um ambiente favorável, tornou-se uma “missão quase impossível”.

Ouvíamos professores mais experientes falarem: “A cada dois anos, percebemos mudanças de comportamento nos alunos”. Hoje, as transformações comportamentais, sociais, familiares e outras possíveis são diárias, e recebemos na escola uma infância já fragilizada pelo histórico familiar e social.

O mundo, que já passou por grandes epidemias e por duas guerras mundiais, possui outro desafio urgente: ensinar nossas crianças a terem a esperança de que um planeta sustentável é possível, além da confiança no ser humano. O que dizemos, assistimos ou lemos tem impacto direto sobre a infância. Vemos estampados nos rostos e ações das crianças a agitação dos tempos modernos. Elas podem não ter clara a noção de tempo, mas compreendem a angústia do adulto que assiste a filmes que retratam o fim do mundo com hora marcada e o terror das catástrofes naturais. Façamos escolhas: ou ensinamos o cuidado com o planeta Terra e a confiança no outro ou instalamos o medo coletivo.

Negligenciamos a consciência ecológica, os valores e a ética e evidenciamos os desastres, a violência e a sociedade corrompida. Para piorar, entregamos a educação das crianças para a internet, a televisão e sua programação medíocre. Em meio à falta de certezas familiares e sociais, a infância do atual século desenvolve-se com muitos desafios e pouca segurança. Deixamos um legado de destruição das matas, de rios poluídos e um sistema capitalista que escraviza e delegamos aos futuros adultos a nobre missão de salvar a Terra e todas as formas de vida existentes.

Antes, galinha era tema para música infantil e agora é a responsável pela gripe aviária; porco era personagem de fábulas e agora é o vilão da moléstia H1N1; os terremotos saíram dos livros de geografia para a vida prática; icebergs vagam pelos oceanos, anunciando o aquecimento global. Pegamos este mundo, embalamos para presente e enviamos às novas gerações. Não fornecemos a elas valores morais e manual de sobrevivência, mas queremos como sinal de recebimento do pacote a solução dos problemas ambientais e dos males que causamos. Sendo assim, tenho que repetir: é necessário que as crianças voltem a ser educadas em casa e ensinadas na escola, pois queremos – e, principalmente, precisamos – gerações criativas e conscientes, em vez de amedrontadas pela fragilidade da vida.

Do Jornal "A Notícia" - 26.03.10.


Elizete Feliponi
Pedagoga, formada pela UNERJ - Jaraguá do Sul/SC. Especialista em Políticas Públicas pela FURB e aluna especial no curso de Mestrado em Educação nas Universidades TUIUTI (Curitiba/PR) e FURB (Blumenau/SC). Atuou como professora de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação Especial e Educação de Adultos nas redes pública e privada de ensino. Palestrante e tutora.

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