Preciosidades

domingo, 28 de março de 2010

As cartas para si. Júlio Gavinho


Crítico gastronômico. Sozinho em sua casa. Sozinho nos restaurantes a que se obrigava a ir. Tão erma solidão que deu para escrever cartas. Escrevia e-mails para a revista da qual era colaborador. Impessoais. Frios como saladas ou vichyssoyse. Escreveu carta primeiro para si mesmo. Escreveu para si como se fosse uma terceira pessoa que conhecesse muito e soubesse da incompatibilidade entre a vida e a expectativa. Escrevia com fidalguia e iniciava sempre dizendo que chegou aos seus ouvidos que ele não andava bem. Coisa de amigo em comum. Se os tivesse. Preocupado, e sem conseguir falar com ele já que não possuía telefone, decidiu escrever. Até porque determinadas coisas são mais fáceis de escrever do que dizer. Falava da saudade como se fosse a que sentisse. E na verdade o era. Dizia sobre os males da solidão e de viver consigo mesmo. Procurava mostrar o fato de viver com uma companhia que o amaria incondicionalmente – ele próprio. Deveria aprender a cozinhar, pois isso já não seria viver só, mas acompanhado de si. Dizia dos prazeres da ditadura televisiva e da seleção de cardápios. Chegaria por concluir que ser sozinho é então um benefício e não o malefício que sempre achou. Terminava dizendo que esperava vê-lo em breve animado com as possibilidades que a vida oferecia, e que em nenhuma hipótese poderia se negar a ela. Saudações, assinado ele mesmo.

Passou então a escrever a esmo. Escolhia endereços a esmo, sempre residenciais, e enviava. Nunca houve resposta. Escrevia dizendo que sentiu uma súbita vontade de escrever para alguém e que, aleatoriamente, escolheu esta pessoa. Falava de si, das coisas de que gostava. Das viagens que fez na mocidade, dos trabalhos que já teve e do ofício de crítico gastronômico. Escreveu por meses a fio sem resposta.

Como em um destempero de melancolia escreveu uma carta triste e desesperançada que dizia que de nada valia pena, pois dela não havia eco em sinais de tinta. Escrevia pelo prazer de sintetizar sentimentos que às vezes sequer existiam. Nada valia o exercício de aproximar-se de desconhecidos, pois nunca o deixariam de ser. Nada valeria o esforço de descobrir o outro lado. As sensações de quem o lia. O desejo de conhecê-lo não existia, pois dele ninguém respondia. Sua tentativa de aproximar a solidão do fastio de companhia era então redundante fracasso. Deixaria, pois, de escrever e dedicar-se-ia exclusivamente ao trabalho. Neste sabia que existia eco. Deste, certeza tinha de que as linhas eram percorridas por ávidos olhos, imaginativos de suas impressões sobre crustáceos, aves e carnes exóticas. Linhas, abandonava-as naquele momento.

Dito e escrito, enviou triste e sofrida carta de despedida a todos os que havia escrito em tempos.

Não tardou e recebeu uma carta perfumada. Perfumada como são as missivas cinematográficas. Por tal influência, fez de automático o gesto de levá-la ao nariz e aspirar bem fundo tão sutil e, certamente, feminino perfume. Abriu a carta e delicado papel se fez entre os dedos.

Respirava o perfume e lia, bela caligrafia, linhas emocionadas sobre deixar a solidão e criar conluio com o desconhecido. Dizia que valia sim o exercício diário do desconhecido, pois, questionava, o que é afinal o novo dia que nasce senão o mais retumbante desconhecido. Qual seria então o sentido de descobrir o outro lado, o leitor, senão pelo prazer de saber das sensações que desperta. Ela sim desejava então o fastio da companhia daquele que desconhecia, somente pelo encanto da descoberta. Queria fazer dele o último pedaço de desconhecido desbravado por um homem. No caso dela, mulher. A mente. O corpo. A alegria de ser sabedora que ele existia por trás daquelas linhas que a cativaram pelo prazer de lê-lo e por conhecê-lo. Ofereceu-se ao sacrifício. Marcou data e lugar para o encontro.

Deu-lhe endereço. Mapa do esconderijo de chaves. Apartamento em Copacabana. Ele compra rosas. Vermelhas. Abertas. Lindas. Volta à floricultura e compra mais. Quase chegando, volta e compra mais rosas. Baixo,meia-idade, bem vestido e bem-sucedido. Peso equilibrado com altura. Óculos . Cabelos curtos. Sapatos mocassins italianos. Sem perfume. Sem cheiro. Chega uma hora antes. Um apartamento amplo. Vazio. Na rua, os táxis buzinam. Sinteco com desenhos geométricos. Descobre uma bela banheira. Enche. Começa a debulhar as rosas e a espalhar pétalas pelo chão. O dia cai. Espalha pétalas de rosas na água morna da banheira. Ela chega. Um pouco acima do peso. Menor que ele. Cabelos levemente loiros. Pouca maquilagem. Vestido floral discreto. Bem-sucedida. Abre um sorriso ao ver o chão coberto de pétalas. Na rua, os pedestres andam. Abraçam-se. Beijam-se como se fosse faltar o ar de um ou de outro. Acalmam-se. Beijam-se agora explorando as cavidades um do outro. Trocam gentilmente saliva e sorrisos. Ela carinhosamente lhe tira a blusa, e ele, ato contínuo, gentilmente lhe abre o sutiã por dentro do vestido. Ela gosta da sensação do tecido em contato com os mamilos, agora comprimidos contra o peito dele. Na rua, os ônibus aceleram. Ele a olha tão profundamente que lê suas linhas na retina dela. Vê seus escritos estampados nos sentimentos dela. Ela sente a excitação de menina que já não é mais. Despem-se de calças. Pudores. Calcinhas. Passado. Cuecas. Desconfianças. São agora íntimos, ambos com pétalas de rosas a cobrir-lhes o dorso. Rolam. Na rua, os mendigos rolam. Ela abre-se como uma rosa úmida e dele recolhe o beijo. Composto de saliva. Pétalas. Dentes. Rosto. Gosto. Bom gosto. Convidado a entrar, entra. E ali, recebido e bem-vindo, percebe que suas cartas foram respondidas. Percebe que o ritmo da vida é o vagar. Balanço compassado. Dúvida se deve ficar ou ir. Percebe o sentido de suas linhas na tinta de lágrimas que agora dela vertem, e nas linhas de vida doloridamente escritas em suas costas. Escrevem linhas e linhas de um futuro incerto e imprevisível. Cartas que ainda escreverão para si. Na rua o carteiro corre para entregar outras cartas.

(“As cartas para si”, transcrita do livro “Homem procura menina e outras estórias”, de Júlio Gavinho (1968), Editora Germinal, São Paulo, 2004)

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