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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

BITCHES BREW. André Sant'Anna


POR VOLTA DA MEIA-NOITE, Duke Ellington deixou a cova e se sentou sobre o túmulo, observando a lápide vizinha, de Miles Davis. Duke Ellington observou a lua cheia e ficou tamborilando com os dedos no cimento do túmulo.
 
Miles Davis chegou atrasado. Toda noite era assim. Miles Davis estava com os olhos vermelhos e não parava de esfregar o calo do lábio superior no calo do lábio inferior. Duke Ellington achava o cacoete de Miles Davis muito feio e cumprimentou o trompetista:

— Como vai, Miles.
— Morto, como sempre, Duke.

Duke Ellington encarou Miles Davis e pensou:

— Ainda ponho esse menino na banda.

Miles Davis também observou a lua cheia e não falou nada. Duke Ellington pensou:

— Ele é esquisito, pensa demais.

Miles Davis ficou mexendo com a mão como se apertasse as válvulas do trompete.

Duke Eilington perguntou para Miles Davis:

— Tem praticado, Miles?
— Não, só escutado, Duke.
— E o que você escuta, Miles?
— Eu escuto sequências de notas, timbres e intensidades.

Duke Ellington achou que a resposta de Miles Davis era óbvia demais e que Miles Davis sempre falava qualquer nota. Então, Duke Ellington disse a Miles Davis:
 
— Não entendi o que você quis dizer, Miles.
— Não precisa, Duke.
— Mas eu sempre quis entender você, Miles. Aquela música que você fazia com os meninos. Era jazz?
— He he he. Duke, você é o campeão. Não precisa ser tão antigo.
— Não é isso, Miles. É que aquelas improvisações eram feitas em cima de harmonia nenhuma.
— Que bom que você gostou, Duke.
— Uma nota sem harmonia vira qualquer nota.
— He he he. Não, Duke. Uma nota solta, livre do acorde, contém todas as harmonias.
— Você ainda é jovem, Miles.

Duke Ellington e Miles Davis ficaram em silêncio durante alguns minutos. Uma nuvem encobriu a lua cheia. Depois, Miles Davis falou para Duke Ellington:
 
— As suas harmonias eram tão perfeitas que as notas ficavam livres nelas também.
— Você é muito intelectual, Miles. Música se faz é com o coração.
— He he he. Música a gente faz porque é divertido.
— Olha, quem fala. Logo você que passou a vida toda deprimido, mal-humorado.
— He he he. Heroína, sonhos estranhos, mulheres. Mulheres, Duke.
— Elas adoravam a gente, hein, Miles?
— He he he.
— Miles?
— O que foi, Duke?
— Como é que chamava aquele seu disco maluco? Aquele com os meninos, cada um tocando prum lado diferente... tinha um guitarrista inglês, eu acho.
— Era Bitches Brew, mas a gente tocava do mesmo lado.
— Não importa, Miles. Eu queria saber era se Bitches significava putas, cadelas ou bruxas.
— He he he. Dá licença, Duke.

Miles Davis tirou uma seringa do casaco dourado de lantejoulas, catou um punhado de terra no chão e o diluiu na água da chuva que começava a cair.

Duke Ellington, impassível, ficou olhando para Miles Davis injetar o líquido marrom numa veia da batata da perna finíssima.

Miles Davis tossiu, cuspiu para o lado e disse a Duke Ellington:

— Descance em paz, Duke.

Duke Ellington ouviu o som da chuva caindo, o timbre das gotas batendo na terra, em cada túmulo, ouviu uma sirene de ambulância ao longe, o eco de um cachorro latindo num beco, uma risada de mulher, o vento, garotos que corriam pela rua chutando latas vazias. E afirmou para si próprio:

— Amanhã eu chamo esse menino pra tocar na banda.

 Texto transcrito, do livro "Inverdades", p. 25/27)

André Sant'Anna

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