Preciosidades

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O casamento e a cozinha. Júlio Gavinho

Senhor Juiz:

O que sempre moveu todas as descobertas humanas foi a curiosidade. A fome e a necessidade são as mães de todas as vontades, em todos os lugares, em todas as eras.

Eu sempre fui curioso. Entender o meio ambiente sempre foi, desde muito pequeno, quase uma obsessão. Comecei a ler jornais muito cedo, a ter opinião crítica a respeito de tudo e a exprimi-la, ali ao redor dos doze, treze anos. Como eu estudei sempre em colégios religiosos, estas manifestações quase sempre encontravam barreiras de comportamento ou de ética.

A vida no claustro foi minha primeira experiência como observador. Eu estudei em um colégio de subúrbio muito grande e tradicional no ensino religioso. A freiras moravam nas próprias dependências do colégio em uma área pouco reservada próxima ao ginásio.

O que leva as pessoas à opção religiosa, sempre será minha dúvida de vida. A negação aos grandes prazeres da vida, a transformação da existência em um purgatório sem amenidades, para mim não fazem o menor sentido. Nenhum, Sr. Juiz.

O altruísmo não tem, necessariamente, relação com o claustro, com o celibato, ou a opção pela pobreza. Não compreendo viver com trajes de duzentos anos, criados para o clima europeu, optar por alimentação orientada religiosamente, e principalmente viver sem sexo. Publicamente, Sr. Juiz.

O dia a dia das freiras era de um "sem graça" total, sempre a mesma rotina. Eu sempre observa suas vidas na esperança de um dia ver alguma coisa diferente. Uma barra de chocolate, feijoada, maquilagem, calça jeans ou qualquer outra coisa fora do padrão ditado por elas. Como sexo.

A mítica do sexo entre freiras e padres é secular e, como toda fofoca tem um fundo de verdade, um adolescente como eu somente pensava nisto. A quase totalidade de minhas observações era voltada para sexo. Eu acreditava que um dia veria duas freiras em uma cinematográfica relação lésbica, ou um padre e a madre superiora totalmente nus cobertos de geleia e formigas, ou mesmo uma grande suruba. Sem geleia ou formigas.
Nunca vi nada além do rotineiro. Nem um banho, Sr. Juiz.

Sexo, nem pensar. Concluí que os religiosos reais são seres nascidos assexuados, sem nenhum pensamento voltado para o sexo oposto. Vocação.

Porém existem outros religiosos não tão reais. São exatamente os frustrados, os abandonados e mau amados, rejeitados que assumem a postura de superiores por escolha religiosa. Substituem o fracasso na vida sentimental pela falsa vocação. Enlouquecem.

Vivem em pecado como pederastas ou sodomitas, afogados e acorrentados na sua tristeza e melancolia. Pelo menos assim deduzo, Sr. Juiz. Deste assunto eu nada sei.

Quando eu passei para a faculdade, a minha vida passou de observação simples, para a participação. Eu não mais observava a opinião alheia. Eu fui obrigado a ser observado. Falar em público e discutir com colegas diferentes opções e saídas. Deixei de observar por um longo tempo.

Meus encontros amorosos eram quase sempre ligados a paranóia de estar sendo observado. Isto nunca foi claro para mim, sempre subliminar. Nunca falei sobre isto com ninguém, mas a idéia de estar sendo visto causava-me atração e repulsa. Excitava e broxava. Montanha russa.

Aos pouco comecei a dar vazão a estas alucinações e a diminuir a preocupação com isto. Passei, quase que automaticamente, a descuidar-me da privacidade na vida pessoal. Escondia meus estudos por considerar-me por demais dedicado, mas expunha minha casa e rotina aos vizinhos. Não mais fechava as cortinas ou vestia-me pela manhã. Caminhava nu pela casa. Trocava-me com as janela escancaradas. Comia nu. Cozinhava nu, Sr Juiz. Cozinhar nu é um perigo para que tem pênis e bolsa escrotal.

Minhas namoradas sempre foram apaixonadíssimas, doutor. Sou o tipo de sujeito preocupado com o processo eterno de conquista. Sempre flores, poesias, cartas e presentes. Sempre gentilezas e carinhos. Atenção e cordialidade. Sempre com crescente obsessão pela exposição. Tudo bem até que casei.

Conheci minha mulher em um engarrafamento. Ela estava parada em um sinal como eu. Vermelho. Fiz um sinal despretensioso, impressionado com sua beleza e classe. Ela abriu o vidro e perguntou se eu estava falando com ela. Respondi que aquilo era o início, e que eu iria falar com ela pelo resto da vida. Ela deu uma estrondosa gargalhada. Acho que foi a última vez que vi minha futura esposa gargalhando. Seguimos e paramos de novo em outro sinal. Amarelo.

Ela perguntou se eu já havia almoçado, e eu que já, respondi que não. Fomos então até um restaurante na rua Maria Quitéria em Ipanema, que estava em obras. Fechado. Sugeri que fossemos então até minha casa, aonde eu cozinharia algo para nós. Ela inacreditavelmente aceitou, Sr. Juiz. Passamos no supermercado. Comprei duas perdizes, alho poró, açafrão, uvas, 1 kg de músculo, legumes em geral, massa folhada, duas garrafas de boudeax Saint Jullienne 1977 que custaram o dobro de todas as outras compras, e uma garrafa de Esporão 1995, branco. O último sinal que paramos foi verde, já em Copacabana. Percebemos que estava verde quando outros motoristas exercitavam seu orgulho fálico na buzina.

Chegamos em casa e ela impressionou-se com o tamanho do apartamento. Disse que comprei em uma pechincha. Leilão judicial, não é doutor? Estava em mal estado e eu tive que reformar aos poucos. Ela perguntou se eu era rico e disse-me que era pedagoga. Ignorei a declaração Ela completou dizendo que era dona de uma pequena escola na Tijuca. Dei-lhe pouca atenção. Acho que ela não percebeu. Detesto criança, Sr. Juiz.

Coloquei o músculo depois de limpo com três litros de água para cozinhar. Acrescentei o alho poró, duas cenouras, um pouco de repolho, alho, cebolas, meio pimentão, e tampei a panela. Eu sabia que um bom caldo de carne deve cozinhar, pelo menos duas horas em fogo alto, ou quatro em fogo baixo. Isto me deu bastante tempo.

Separei e lavei algumas folhas de alface americano, um punhado de tomates cereja, algumas passas brancas e um pedaço de queijo roquefort. Nesta receita, nunca se deve usar gorgonzola, doutor. O gorgonzola, italiano, é um queijo de leite de vaca. O roquefort, francês, é feito de leite de cabra, o que lhe confere um sabor mais forte e único. Depois de lavadas, dispus as folhas com carinho no sentido centro-para-fora do prato, cortando um pouco do cento para que ficassem cobrindo exatamente o corpo do prato. Espalhei os tomates-cereja, algumas passas e pedaços irregulares do roquefort. Cobri tudo com fartos fios de azeite extra-virgem e vinagre balsâmico.

Em outra panela coloquei dois litros de água, seis cenouras grandes, duas cebolas pequenas cortadas irregularmente, sal, pimenta de Caiena, uma batata, alho, duas colheres de sopa de páprica picante, azeite português e uma taça de Adriano - Ramos Pinto reservado, branco.

Depois de cozidas as cenouras e a batata até quase desmancharem, acrescentei meia lata de creme de leite e bati tudo no liqüidificador. Tivemos então um creme amarelo, picante e perfumado. Coloquei o creme na geladeira. Fritei rapidamente alguns cubos de pão de forma no azeite português, e estava pronto o prato número dois, doutor.

Falávamos de nossas vidas e ela contou-me das atividades da escolinha, da importância do processo educacional na formação das personalidades e eu ouvia atentamente. Imaginava-a deitada na mesa da cozinha, em posição ginecológica, já sem calcinha. Somente com as partes de cima de seu traje. Camiseta branca lisa, paletó marrom bem cortado, e talvez um soutien branco daquele de renda e suporte para os seios. Óculos escuros. Imaginava o cheiro agradável de seu sexo, misturado aos aromas da páprica, da cebola, do alho, do vinho do porto, e dos vapores do cozimento do caldo de carne. As vezes entendia que ela estava tentando marcar uma posição de mulher independente. Empresária. As vezes sentia em seu discurso e olhar uma certa fascinação por ver um homem cozinhando.

Gostei. Gosto de ser admirado, Sr. Juiz.

Passei o caldo de carne pela peneira fina, com auxilio do Chemois, e coloquei as perdizes já desossadas para cozinhar em parte do caldo. Ao final do cozimento, adicionei um cálice de Armagnac e deixei evaporar o álcool. Enquanto assava a massa folhada, aproximei-me dela, e interrompi sua fala com um beijo. Longo beijo. Quase queimei as perdizes. Ela disse estar estranhamente faminta, confusa com os odores da cozinha, misturados ao vinho branco e o ao sabor da minha saliva. Ignorei.

Retirei os discos de massa folhada do forno, deixei que esfriassem, cortei-os ao meio no sentido das folhas. Retireis as perdizes da panela, cortei em pedaços grandes, espalhei as uvas cortadas em finas lâminas, coloquei um pouco mais do caldo de carne. Reduzi no fogo e coloquei-as sobre os discos inferiores de massa folhada. Gentilmente, cobri com os discos superiores e salpiquei algumas gotas do caldo de carne no prato, à volta da refeição.

Às quatro horas da tarde comemos a salada. Às quatro e quarenta sorvemos o carrot cream frio. Cinco e quinze almoçamos as perdizes. Seis horas terminamos a segunda garrafa de Saint Jullienne. Acho que ela não entendeu o vinho. Acendi um Montecristo número quatro e bebemos dois cálices de Godiva cada um.

Trepamos. No chão. Na mesa e na cama. Na varanda. No terraço e na escada. Desconhecidos, porém íntimos. Dividimos a segunda coisa mais importante da vida, o alimento. Primeiro respiramos, depois comemos. O rito da refeição começou a ser celebrado com fausto entre nós, seguido de sexo sofrido, urgente, como se fosse a última vez e não a primeira. Choramos e gozamos. Casamos dois meses depois, doutor.

Escolhi cada item do cardápio do casamento. Dos canapés à sobremesa. Da marca da água mineral até os licores. Dos salgados até os petit fours. Das entradas às sobremesas. A lista de convidados foi devidamente organizada por nós dois para que ninguém ficasse de fora. Amigos antigos. Novos amigos. Mesas de seis lugares. Toalhas de linho. Serviço branco. Talheres de prata. Pouca luz e um quarteto de jazz durante o cocktail. Cerimônia. Jantar. Dança. Durante a festa, saímos. À francesa. Seguimos de carro. Trocado. Pintaram meu carro. Fugi com o de um amigo. Seguimos para a Barra da Tijuca. Motel. Chegamos e nos beijamos. Incrível a necessidade das mulheres em urinar neste momento. Não em outros. Neste. Saiu do banheiro e novamente nos beijamos. Algo que diferente. Um misto de hálito de álcool, extremamente excitante, com paladar da comida. Suado, tirei o paletó e a gravata. Ela, linda tirou o arranjo dos cabelos, os sapatos e a calcinha. Conservou o belo e armado vestido de noiva. Naquele momento, cobriu-me o descontrole, e vi naquela mulher, a única. O que poderia ser a síntese dos meus desejos por uma fêmea. Senti-me ancestral, e seus ancestrais. Cro-magnon. Neanderthal. Primitivo e necessitado. Enquanto misturavam-se nossos sabores mais íntimos, descobri nela a excelência gastronômica doutor. O paladar, inebriado pelo whisky da festa e sal de seu suor, aguçou-se e viu nela tudo de mais que poderia eu esperar de uma refeição. O perfume que ela usava, Samsara, associado ao cheiro de sua pele e a textura de seus seios, fazia-me sugar lenta e gentilmente os mamilos, por onde deveria sair sua maternidade. A barriga, quase que por ausência, ostentava oferecidos filés abaixo das costela, por onde minha boca insistia em colher mais sal. O tempero desta mulher, ainda semi-vestida, mostrava-se ainda por ser descoberto, e isto eu fiz, Sr. Juiz. Mergulhei no vão de suas pernas e ali, somente ali, pude perceber aonde jazia minha nova mulher. Entre pouco cabelos, e coxas firmes estavam as trufas, negras e brancas. Colônias de lagostas vivas e móveis. Lindos e gordos javalis. Massas das mais diversas composições. Escargots. Embutidos portugueses. Presuntos espanhóis. Arenques russos. Salmões chilenos. Búfalos em cortes exóticos. Encontrei em seu sexo, tudo que mais procurei na cozinha, e que esta mulher agora me ofertava entre sorrisos, gritos e sussurros.

Levantei-me e tal qual a uma ave pequena, pus-me a apertar o seu pescoço, até que sangue não mais passasse. Quando desmaiada, pacientemente e com as facas do próprio hotel, separei os membros inferiores e superiores. Retirei cuidadosamente o fígado e os rins. Pude descartar os rins, bexiga e órgãos sexuais internos. Separei as costelas. Descartei os pulmões e aparelho digestivo. Cortei os filés. Separei aquela maravilhosa língua. Saí e comprei caixas de isopor. Acondicionei os pedaços em caixas e deixei o hotel rumo a minha casa.

Fiz primeiro os filés, empanados em farinha de trigo e curry. Sal e pimenta. Um pirê de maçãs com cravo. Um leve Chardonay, napa valley, 1990, bem gelado.

Ainda tive tempo de, na noite seguinte, limpar e temperar a língua em uma vinha d'alhos, cortá-la em pequenas tiras e junto a um caldo feito com as aparas dos filés de minha esposa, cozinhar um risoto de língua magnífico. Pus algumas cebolas e alho a cozinhar, acrescentei o arroz arbório, tipo super fino, uma garrafa de Dão "Terras Altas", branco bem seco. Ao evaporar o álcool, comecei o ritual de por o caldo e mexer o risoto até o perfeito cozimento. Os policiais chegaram neste momento. Fui preso, e estou aqui com o senhor. Queimei o arroz, Sr. Juiz.

P.S.: Texto extraído do livro "Homem procura menina e outras estórias", de Júlio Mendes Gavinho. O autor não publicou mais, hoje é executivo do ramo de hotelaria, trabalha e mora em São Paulo.

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