Preciosidades

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A parede invisível. Patrícia Ferreira


A chuva batia mansinha na janela e pipocava no telhado, como se quisesse conversar comigo. E, pelas frestas da porta, entrava aquele cheirinho de terra molhada, lavando a alma da gente. Se ficasse com os olhos bem fechados, podia sentir a chuva escorrendo no meu corpo, entrando pela camisa suada, refrescando o meu peito e se misturando com a minha pele.

Quando eu era pequena, a chuva me dava medo, morávamos no Morro da Glória, eu, minha mãe e minhas duas irmãs. Era uma peça só, feita de tábuas pretas e viscosas, um pouco separadas umas das outras e o telhado era cheio de falhas.

Chegava a noite, mamãe abria uma caminha de molas, encostava em sua cama e ali dormíamos todas juntas. Se era noite de lua, eu ficava olhando as estrelinhas que brotavam do céu. Era uma hora de paz e grandeza. E a gente parecia que podia tudo. Eu gostava mesmo era de ficar de barriga pra cima, que era pra poder ver todas as luzinhas que se misturavam dentro de casa e se encontravam com os sons que vinham da rua. Som das vozes da gurizada que amanhecia fazendo arruaça.

Na maioria das vezes, era impossível curtir as luzinhas mágicas, porque minha mãe também não dormia, como eu, e olhava as estrelas, só que chorava quietinha, naquelo choro particular, como se fosse proibido chorar. E as lágrimas iam caindo soltas e escorrendo pelo rosto, grossas e quentes, quentes e doídas. Então eu fingia dormir, até ressonava de vez em quando, e, sem perceber, o que era brincadeira acabava acontecendo: dormia. 

Sou a mais velha e, naqueles tempos, só tinha duas irmãs; Simone, um ano e meio mais nova, e Caren, com oito anos de diferença, um bebezinho de cabelo encaracolado e olhos azuis, linda. 

Mas eu estava falando da chuva e do medo que sentia dela. Quando chovia, podia ser forte ou fraca, dava um frio dentro de mim, como se aquela noite não fosse mais acabar e como se toda a água que escorria pelo chão de terra batida, fosse inundar tudo e subir pelo pé da cama afogando a gente. A primeira a ser atingida seria a Caren, que dormia na caminha de molas. A chuva ia chegar, deslizar pelo chão e subir, subir, e ela não se mexeria, de olhos fechados e branquinha, branquinha. Eu me enchia de pavor, mas, quando tentasse salvá-la, a parede invisível do colgate estaria entre nós, e a gente não ia se ver nunca mais. Daí eu chorava, soluçava alto até minha mãe acordar e me acalmar. Então eu enrolava bem os pés nas cobertas, era jeito de me sentir protegida e segura do monstro da chuva, e chovia, chovia, chovia... 

P.S.: Conto transcrito do livro dos premiados em Concurso Literário em Santa Maria, RS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.