Preciosidades

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Terrores. Luís Fernando Veríssimo


Imagine uma convenção dos seus terrores. Tudo o que já assustou você um dia reunido. Em sonho, em algum lugar você as encontrará, confraternizando: as suas fobias, as suas bestas negras. Você não as temerá mais. Poderá, finalmente, conviver com elas socialmente. Trocar histórias e lembranças. Evocar seus medos, como se fossem bobas experiências vividas num passado improvável, e dar boas risadas.

O Bicho-Papão estará lá, naturalmente. Mas não será nada parecido com o Bicho-Papão que você tinha na memória.

“Mas... Você é menor do que eu!”

“Na época eu era bem maior.”

“E os seus dentes? Eles eram enormes e afiados.”

“Pois é, perdi todos.”

E o Bicho-Papão tapará a boca para rir. Os cabelos que cobrem todo o seu corpo estarão brancos e ele usará óculos. O Bicho-Papão usará óculos. Você o ajudará a sentar-se, carinhosamente, e perguntará se ele não quer um refresco.

Outro animal se apresentará. A princípio você não o reconhecerá. Sua forma é indefinida, metade réptil, metade lobo, mas com longos braços e mãos humanas. A mão que ele estende para você apertar treme um pouco. Ele está emocionado.

“Você é...?”

“O bicho que tinha embaixo da sua cama. Lembra?”

“Puxa. Eu pulava na cama, com medo de que você pegasse o meu pé.”

“Tentei várias vezes, mas nunca peguei. Você era mais rápido.”

“Gentileza sua.”

Ele se afastará, lentamente, se arrastando pelo chão com dificuldade. E pensar que você tinha medo daquilo.

“Lembra de mim?”

Você examinará a cara do homem que surgiu à sua frente e sorri timidamente. As feições são vagamente familiares, mas você não consegue... Mas claro!

“Jorjão!”

Vocês se abraçarão, ele um pouco sem jeito, e ele dirá:

“Eu era o mais brigão da turma , na escola, lembra?”

“Se me lembro. Você vivia ameaçando bater em mim.”

“Ora...”

“Eu tinha pavor de você. Que fim você levou? Foi lutador? Leão-de-chácara? Assassino?”

“Não, não. Me formei em Contabilidade. Hoje só bato na minha mulher, quando ela deixa.”

E quem será aquela figura encurvada e hesitante lá longe? É o seu professor de latim! O homem que tirava o seu sono de adolescente, o homem cuja ameaça constante de chamá-lo para declinar um verbo tirava nacos semanais do seu estômago... Ele também não é como você lembrava. Nem se aproxima, acena amistosamente de longe e volta a conversar com outra figura que você também custa a reconhecer. É uma figura de pijama. Será quem você está pensando? É. O General. E pensar que durante tanto tempo você temeu que ele liderasse um golpe fascista no país e que até você, que afinal é de esquerda mas só teoricamente, fosse fuzilado. Ali está ele com cara de sono, certamente pensado no jogo de biriba que está perdendo.

Como nós éramos ridículos, pensará você, com medo dessas fantasias. Aquela ali, por exemplo, O homem do saco. Como você podia ter medo de um pobre miserável, um trapeiro que mal tinha força para carregar seus sacos, ainda mais com você dentro de um deles? O homem do saco se aproxima. Você o recebe com um sorriso. Ele não sorri. Você começa uma conversa simpática para pô-lo à vontade, mas ele o interrompe.

“Está na hora” - diz ele.

“O quê?”

“Está na hora. Vamos.”

E ele colocará você dentro de um saco e levará você para outro mundo.

(Luís Fernando Veríssimo, in "Terrores". Texto retirado de um livro didático antigo do ensino fundamental. Desconheço em que livro do autor o texto foi originalmente publicado ou se o foi realmente)

Um comentário:

  1. Falando sério, simplesmente adorei esse ;]
    Obrigado por colocar aqui para a gente =D
    xoxo

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